Aí vem ele, estão vendo? O espírito de Albert Camus de novo circulando pelas livrarias brasileiras, agora, com o calor íntimo de suas cartas. A grande novidade editorial é a publicação da correspondência amorosa de pouco mais de uma década entre o escritor e a atriz Maria Casarès. Quem tiver fôlego para mais de mil e duzentas páginas de amor, que mergulhe nesse convívio construído, entre outras coisas, com ternura e suave dedicação. O leitor pode ainda enveredar por novas edições, como a da correspondência entre Camus e seu velho professor Louis Germain, que o considerava “seu Menino” mesmo depois do Prêmio Nobel.
É de se perguntar quando chegará também por aqui uma bela edição brasileira das cartas trocadas entre Camus e seu “companheiro de planeta” René Char. Tal qual o tempo do amor amante, esse do amor amigo tem mais de dez anos e, se o volume de páginas é bem menor, existe aí um reino de fraternidade aliado à letra que transforma essas cartas num secreto refúgio provençal. Camus e seu amigo poeta caminham juntos, rolando suas pedras não só pela história da época, também pelos cumes cheios de luz de Luberon e pelas estradas ventosas de L’Isle-sur-la-Sorgue, em Vaucluse, no sul da França, terra natal de René Char.
Desde que começam a se escrever, em 1946, um e outro vão se descobrindo no campo pessoal e da literatura, e é esse “rio subterrâneo”, como diz René Char, que ali adiante os reunirá na paisagem de Vaucluse continuando uma paisagem interior compartilhada. Os amigos veem-se unidos pelos próprios livros, pela mesma posição diante de protestos ou manifestos políticos, e sentem um cansaço parecido pelo meio literário parisiense (René Char detesta Paris e sua “vala intelectual”, Camus tem sede de partir e de fato está quase sempre viajando).
Depois de pouco mais de um ano dessa amizade, Camus já segreda ao amigo seu desejo de deixar Paris. Voltaria para a Argélia, se pudesse, e, não sendo possível, a pátria que ele prefere é a de René Char, de caminhos pedregosos lavados pelo Mistral, salgueiros, ciprestes, álamos, amendoeiras, olivais e um enorme silêncio debaixo das estrelas ao pé dos montes. Com o dinheiro que obtém com o livro A peste, ele procura uma casa nos arredores de L’Isle-sur-la-Sorgue, e René o ajuda de perto nessa busca, já que conhece de menino cada pedra, cada árvore, cada família daquela região.
Vaucluse era lugar de encontro e abrigo de vários escritores e artistas antes da guerra, durante a Ocupação e depois da Liberação. Ali estiveram muitos amigos de René Char, como André Breton, George Braque e Paul Éluard. Camus vai se tornando um “vauclusiano voluntário”, alugando casas por temporada até adquirir a sua, em Lourmarin, em setembro de 1958. Nessa casa, sob uma “luz fabulosa que inunda tudo”, ele começará seu romance O primeiro homem em agosto de 1959. Quem diria que a essa altura estava a cinco meses de morrer? Nada o dizia que não fosse um enigma. Mas essa pátria já havia se tornado sua bem antes que tivesse ali a própria casa, era uma fidelidade a ele mesmo, indispensável, como o voto fraterno sempre renovado nas palavras a René Char.
Quando não caminham juntos em L’Isle-sur-la-Sorgue, os amigos abrem em suas cartas essa estrada. “Te envio o outono de Lagnes, e da Sorgue”, diz Camus. “Respire o perfume das ervas e dos riachos, querido Albert. Você me faz falta”, escreve René Char. Eles estão unidos pelo sol de Vaucluse e podem se sentir seguros sobre si mesmos e seus trabalhos, essa confiança tranquila é extensiva à amizade que um tem pelo outro. Dessa fraternidade vem o projeto de um livro, a partir de fotografias de Vaucluse tiradas por Henriette Grindat. René Char convida Camus para mais essa caminhada, no começo de 1951, e Camus guarda o convite, por enquanto está terminado seu ensaio O homem revoltado e se sente extenuado.
Em 1952, Camus tem o manuscrito do que se tornará, junto com as fotos de Grindat e um texto inicial de René Char, esse livro raro chamado A posteridade do sol. E que livro tão especialmente poético é esse, em que as palavras de Camus são dadas pelas pedras, pelos ventos, pelas águas, no calor do primeiro jardim do mundo? Que livro tão misterioso e comovente é esse, em que as imagens em branco e preto brilham de uma luz recordada? Um livro mesmo tão misterioso, que a ideia de o publicar em 1954 acaba adiada e essa posteridade se torna real. “René, aconteça o que acontecer, faça nosso livro existir”, disse Camus para o amigo num último encontro que não se sabia último, dias antes de viajar para Paris sem chegar lá, em janeiro de 1960. A posteridade do sol foi publicado em 1965, com um posfácio de René Char sobre a história dessa amizade, numa edição de bibliófilo de cento e vinte exemplares, e, maravilhosamente, na ausência de Camus, sua voz no livro é o som, o brilho, o arrepio, e também o silêncio, a sombra e a calma da paisagem.