Algo sobre Sêneca

A tradução poderia lançar mão de certo grau de inventividade e ousadia para lograr uma versão elevada do original
O filósofo romano Sêneca
01/07/2024

Trata-se de uma seleção de textos do autor romano Lúcio Aneu Sêneca, publicada como Obras, em 1957, pela editora Atena. A tradução ao português é de Giulio Davide Leoni, que também agregou à edição um estudo introdutivo. Extraio de Sêneca algumas ideias que pretendo aplicar ao terreno da tradução.

Em primeiro lugar, uma breve palavra sobre a tradução de Leoni, que, a propósito, não comenta seu trabalho no estudo introdutivo, escrito com o objetivo de apresentar vida, obra e moral do autor latino.

As notas que aparecem ao final do livro e que, aparentemente, não são de autoria do tradutor, trazem informações úteis para situar o leitor em meio à grande quantidade de referências a nomes de pessoas, personagens, topônimos, mitos e obras.

Não há nas notas comentários sobre a versão de Leoni, com uma única exceção: na tradução da tragédia Medeia, aponta-se que o tradutor, “para uma melhor compreensão da peça”, decidiu fazer ajustes de caráter editorial no texto, introduzindo divisão em episódios e intermédios e inserindo didascálias entre colchetes. Além disso, nota-se, sobre a grafia dos nomes de divindades, que se usaram em geral as denominações latinas mais conhecidas.

Pode-se acrescentar ainda o esforço do editor (supõe-se, autor das notas) em explicar e ilustrar dois provérbios, um latino e outro grego, que representam alguma dificuldade de leitura e tradução — como em geral acontece com os adágios, em especial os mais antigos.

Quanto ao próprio Sêneca, o filósofo aborda brevemente questão tradutória em sua carta ao amigo Aneu Sereno. Ao tratar do equilíbrio da alma, Sêneca comenta a questão do uso (ou não) de palavras emprestadas de outros idiomas, posicionando-se como “purista da língua”: diz preferir o termo “tranquilidade” (em latim) ao original grego “euthymia” (equilíbrio da alma), argumentando que seria inútil tomar palavras de empréstimo a língua estrangeira e imitar seu invólucro. Sustenta que o que se deveria exprimir é a ideia por trás da palavra, “por meio de um termo que tenha a significação da palavra grega, sem no entanto reproduzir a forma”.

O estoico, assim, coloca-se ao lado dos que defendem uma tradução mais domesticadora, por meio do uso, na medida do possível, de palavras e expressões vernáculas. Trata-se, claro, de uma discussão absolutamente infindável e que conta, aqui, com contribuição pontual de um nome de relevo.

A atenção de Sêneca a questões tradutórias não seria de fato algo a estranhar, já que militava na interseção de filosofia, ciência e literatura — searas nas quais a tradução naturalmente se coloca como tema de análise.

Na já citada carta a Sereno, o filósofo-dramaturgo advoga por uma expressão não convencional — que podemos, com alguma liberalidade, estender à tradução. Algo que não pareceria distante de sua proposta domesticadora, que envolve sempre um grau maior ou menor de transformação.

Defende ele que a expressão do majestoso e do grandioso depende de certo arrebatamento — um sair de si, um descolar-se do padrão. É preciso, assim, que o autor/tradutor se desvie do caminho habitual; que sua criatividade o liberte e “o faça subir a alturas onde jamais ele se arriscaria por si mesmo”.

Para o filósofo romano seria conveniente, sim, “afrouxar as rédeas à exuberância e à liberdade e fazer uma interrupção momentânea à sobriedade austera demais”. Citando Platão e Aristóteles, respectivamente, reforça que “é em vão que o homem de sangue frio bate à porta das Musas” e que “não se vê jamais um gênio que não tenha seu grau de loucura”.

Extrapolando, com prodigalidade, pode-se sustentar que também o tradutor, driblando talvez excessos de sobriedade, poderia lançar mão de certo grau de inventividade e ousadia para lograr uma versão elevada do original.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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