Tudo é literatura, dizia Álvaro de Campos em poema datado de julho de 1930. A própria vida se molda segundo padrões que nos vêm de fora? Sim, “Vem-nos tudo de fora, como a chuva”, arrisca o poeta.
A tradução é operação que busca verter o estático — a palavra no papel — em dinâmico — a palavra com sentidos.
Na literatura e na tradução, as palavras não contêm os significados. Estes lhes são atribuídos. De fora para dentro. Assim se define o que são, o que valem.
Não, o original não aprisiona significados que a tradução — ou a leitura — deveria libertar. Não há nada a libertar. Há algo a outorgar.
Ao tradutor cabe determinar o grau e a intensidade de adesão de significados às palavras, dentro de contextos definidos.
O significado real vem de fora, embora haja palavras que simulam exalar sentidos e mesmo certa substância que parece — só parece — resistir à passagem do tempo. Não adianta buscar soluções no interior das palavras — moldes esperando em vão a mão que lhes dê contornos temporariamente definidos.
Há que buscar revestir palavras já despidas de sentidos imediatamente apreensíveis. Ou, por outro ângulo, pode-se vislumbrar essa operação como processo de cinzelagem, lapidando o original, pedra bruta, para fazer emergir dele sua própria tradução.
De fora para dentro, então. Mas como? “A maneira? Se nós somos páginas aplicadas de romances?”, diria Álvaro de Campos.
Tudo o que se lê opera transformações, de fora para dentro. Inclusive os textos de ficção, inclusive toda a literatura, seja ou não em tradução.
Somos mesmo páginas de romances. Desenvolvimentos de textos que se desdobram e, em nós, se difundem e se enraízam.
Somos mesmo páginas de romances? E se ficamos sob o feitiço de palavras dominantes, cuja força se estende por longos trechos da escritura, cujo impacto sobre nós se espraia por largos período de tempo? E se esse domínio, páginas depois, anos depois, ainda ressoa na mente do leitor?
Tudo é literatura, que também nos forma, deforma e transforma. Assim como a tradução também transforma o original — e às vezes também o deforma.
“Traduções, meu filho”, aponta Álvaro de Campos. Essas traduções que somos, enfim. E ainda aquelas que nos atingem, mesmo que muito de longe, com força subitamente cortante: “Você sabe por que está tão triste? É por causa de Platão, que você nunca leu. E um soneto de Petrarca, que você desconhece, sobrou-lhe errado”.
As traduções atravessam eras e fronteiras e nos atingem, sim, e com todo vigor. E atingem inclusive aqueles que não as leram e que nem delas têm sequer ciência.
Tudo é literatura. Traduções. E aqueles que as fazem, e que por elas são formados, acabam por refleti-las viva ou sutilmente.
Álvaro de Campos, aliás, na sequência do poema, sentencia que “Não somos senão fantasmas de fantasmas”. Autores, leitores e tradutores, todos vestidos e formados de literatura, traduções de traduções, fantasmas de fantasmas.
“Mais vale isso que ter a alma dos outros”, continua o poeta. Mais vale, também, a sua própria tradução, a tradução da sua própria literatura. É uma forma válida, vívida e concreta de autêntica expressão. Melhor que viver com a alma de outro, ou que ser fantasma de outro — ou mesmo que ser a tradução de outro.
Mas o outro, esse sempre se interpõe — e o melhor pode ser apenas ideal.
No final, claro, a tradução sempre se impõe, como se o original nunca tivesse existido. No fim do texto, apenas e mais texto. Leiam-se.