A noite ainda envolvia o dia quando a velha kombi roncava no terreiro de casa. A manhã logo esgarçaria os braços por entre as flores e cedros da chácara onde morávamos, num acordo um tanto estranho: trabalhávamos pela moradia e uns trocados no fim do mês. Na decisão de rumar para C. — quando éramos crianças e nossos pais ainda ostentavam certo viço da juventude —, trocamos a penúria da roça pela incerteza de uma cidade de prédios e carros. O homem gritava Vamos, que o dia será de muito peixe. Eu e meu irmão mais velho, com a remela nos olhos, levávamos o pacote do almoço: uns sanduíches de aspecto grotesco de pão caseiro e mortadela. Apesar da alegria da breve viagem, íamos sempre com a certeza de que algo poderia sair dos trilhos — o que invariavelmente acontecia.
Aboletado ao fundo, sobre o motor trepidante da kombi de idade incerta, havia um menino, enteado do velho. Certo dia, simplesmente surgiu entre nós. Um menino muito diferente de todos nós: viera de uma cidade imensa, um lugar que ele descrevia como um reino encantado, onde tudo era possível. Nós o ouvíamos abismados. E sempre desconfiamos de que ele e a mãe fugiam de algo. Nosso imaginário infantil nada tinha de ingênuo. Mas o pequeno cosmopolita, na ida para o meio do mato, nas pescarias, encolhia-se feito um caracol assustado e se rendia à nossa matuta sabedoria: afinal, até então, tínhamos sido criados como animais numa roça hostil e miserável. Éramos desde sempre especialistas em sobrevivência. E não abríamos mão do nosso insípido poder.
M. me olha espantada e feliz. O peixe salta da água, preso ao anzol. É pequeno e brilhante. Papai, eu peguei um peixe, grita no gramado às margens do açude. O corpo de M. é magro e delicado, veste uma calça larga, que a deixa ainda mais frágil. Estávamos há um bom tempo olhando a água parada, atentos à rolha que boiava, sem qualquer menção de afundar. Quando afundar, você puxa, eu dizia a M., com a segurança de um experiente pescador. Sempre fui um péssimo pescador. Na margem oposta, L., meu outro filho, olha fixo para a água. Está ali apenas para nos fazer companhia. É um sujeito solidário na arquitetura possível da vida familiar.
Era uma terra meio inóspita. Após a viagem de quase duas horas, abríamos uma porteira e entrávamos numa espécie de fazenda, cujo dono, ao que parece, era amigo do velho. Além do rio, havia apenas muitos pés de goiaba ladeando a margem. Enquanto o pai e o velho pescavam, nós (três meninos magricelos) ficávamos pulando de galho em galho, colhendo goiabas, jogando pelotas de barro um no outro. Gastávamos a infância na precariedade que a vida nos entregava. Era comum aparecerem porcos. Eles ficavam vagando até que um homem os levava embora. Nunca vi nenhum chiqueiro por perto. Além dos porcos, um cachorro magro abanava o rabo diante da porteira. O resto era um silêncio pesado, quebrado apenas por um ou outro pássaro cantor e pelo chiado da água que prometia abrigar muitos peixes.
O rio corria fazendo pequenas curvas por entre a vegetação rasteira. Meu pai e o velho ficariam o dia todo, entre anzóis, iscas (em geral, minhocas numa lata com terra úmida), varas, alguns peixes e as garrafas de cachaça. Sempre acabavam o dia bêbados. Talvez gostassem realmente de pescar: a pescaria não era um pretexto para entornarem goles volumosos de álcool. Isso era uma rotina em nossas vidas em C. O pai e o velho — nosso patrão na chácara — viviam bêbados. E nós vivíamos com medo deles.
M. me pergunta O que faço agora, papai? O pequeno peixe debate-se preso ao anzol. Eu o envolvo entre as mãos e com cuidado retiro o anzol. Vamos devolvê-lo à água, digo a M, enquanto deslizo o peixe (cuja espécie desconheço) para dentro do açude. Ela me olha e diz Vou continuar pescando. Coloco nova isca no anzol de M. Ela, com as calças largas, o cabelo escorrido na testa, olha atentamente para a rolha que boia na água turva. O sol da tarde começa a perder forças por entre as árvores.
O pai não era um grande pescador. Talvez nem gostasse de pescar. E nunca nos ensinou nada sobre pescaria. Mas ficava lá na beira do rio, ao lado do velho, o dia todo. Conversavam, bebiam, davam risada e, aos poucos, os peixes enchiam os samburás. O velho pescava a maioria. Mas, ao final, dividiam os peixes em partes iguais. E tínhamos de limpá-los no tanque atrás de casa: raspar as escamas com uma faca, abrir a pança com uma tesoura e arrancar todas as vísceras. O cheiro não era agradável.
Uma tarde, à beira do rio, quando já recolhíamos as coisas para ir embora, o pai retirou a linha da água. E, para surpresa de todos, um bagre graúdo, de barbatanas afiadas, saracoteava preso ao anzol. Na embriaguez, o pai nem notara que o peixe havia sido fisgado. Talvez estivesse ali há um bom tempo. O pai retirou o peixe da água e desenhou um sorriso de exímio pescador. Por alguns segundos segurou o bagre próximo ao rosto, como um tolo troféu. Não sei por quê, mas naquele momento achei o pai um grande idiota. Meu irmão, ao meu lado, parecia orgulhar-se da conquista dele. Ele (meu irmão) é um excelente pescador e, infelizmente, também um espelho do pai diante de uma garrafa de cachaça.
Ao volante, o velho arrasta a kombi serra acima. O veículo percorre lento a rodovia. Paramos numa lanchonete e compramos um cacho de bananas. O retorno para casa: três meninos comendo bananas sobre o calor do motor de uma velha kombi; dois homens meio bêbados fedendo a peixe no banco da frente. Assim, sempre chegamos em casa. Limpávamos os peixes no tanque, ouvíamos as reclamações da mãe e torcíamos para que a cachaça não transformasse o pai num demônio. Ou ele nos batia feito o coisa-ruim ou dormia feito um porco cansado. Sempre torcíamos para o pai transformar-se num inofensivo suíno.
O velho, muitos anos depois, suicidou-se ingerindo um dos venenos utilizados na chácara de flores. Encontram-no duro e gelado entre as samambaias penduradas nas estufas de plástico. Adulto, seu enteado foi assassinado numa cidade próxima a C. Meu irmão me contou sobre o crime em uma das poucas conversas que tivemos na vida: não falo com ele (meu irmão) há anos — não que haja animosidade entre nós. Apenas vivemos em planetas distintos. Nada disso tem a ver com pescarias.
Deixamos os anzóis à beira do açude. O restaurante-fazenda em breve fechará. O fim de tarde já ameaça encobrir o dia com a escuridão. Temos de ir embora. A pescaria foi a última atividade. M. está feliz: andou a cavalo, de pedalinho com o irmão, e pescou um peixe. O papai não pegou nenhum peixe, diz sem qualquer maldade diante do meu fracasso. Ameaço confessar que nunca gostei de pescar. Mas apenas a olho e esboço um sorriso meio sem graça.