Malone morre, vivem Beckett e Leminski

Volta à cena Beckett, pelas mãos de Leminski. Publicada inicialmente em 1986, pela Brasiliense, a tradução de Malone morre pelo poeta curitibano é reeditada agora (outubro de 2004) pela Códex
Samuel Beckett: um messias para o povo artista.
01/02/2005

Volta à cena Beckett, pelas mãos de Leminski. Publicada inicialmente em 1986, pela Brasiliense, a tradução de Malone morre pelo poeta curitibano é reeditada agora (outubro de 2004) pela Códex. Uma grata surpresa para quem aprecia a boa literatura. Também uma boa nova para quem aprecia a tradução feita com inventividade.

Dono de uma prosa singular, Samuel Beckett foi mais que dramaturgo e romancista. Foi explorador da linguagem como poucos. Jovem, foi secretário de James Joyce. Na maturidade, produziu, no teatro e no romance, uma obra instigante. Malone morre é fruto de sua fase madura. Como outros dois romances dessa fase — Molloy e O inominável —, foi escrito originalmente em francês, e não em inglês, língua materna do autor. Malone foi, depois, traduzido para o inglês pelo próprio Beckett.

Trajetória incomum, pois, tem este Malone. Escrito em francês e traduzido pelo próprio autor ao inglês, nos chega em português traduzido por um tradutor invulgar, Leminski, que, segundo ele mesmo, o fez a partir dos dois “originais”. O resultado é, em tradução, uma obra de autor. Ou de autores.

Em posfácio, o poeta fala de Beckett, de sua literatura, das peculiaridades de traduzir um texto “duplo”. É um texto raro em traduções brasileiras, em que o tradutor (e só um tradutor-autor afamado poderia fazê-lo) menciona sua estratégia de trabalho.

Tradutor traduzido, Beckett oferece, nesse Malone português, terreno fértil para análises teóricas e práticas. O irlandês não traduziu somente a si mesmo, mas praticou também com o texto de outros. Conhecia o ofício, certamente intuía suas dificuldades. Autor-tradutor (e também já traduzido, claro), Leminski alcançou aquilo que todo tradutor quer: só traduzir o que quiser. Ao fazê-lo, era como se introduzisse, na tradução do texto do outro, uma parte de sua própria literatura.

Malone é texto de pouca ação, terreno ideal para que sobressaia a habilidade no trato da língua. Na tradução, também o campo é vasto, amplo o espaço para a criação. O poeta, como em boa parte de sua literatura, não refreia o instinto de povoar o texto com fraseologias, expressões fixas que dão sabor vernáculo ao texto estrangeiro. Que tal: “Mas em que difere daquelas que fazem de mim gato e sapato desde que me conheço por gente?” Em tradução espanhola, encontramos: “Pero, ¿en qué se diferencia de aquellas que me confunden desde que existo?” O contraste é claro e dispensa comentários.

Outra característica marcante de Leminski — o gosto pelo neologismo, a formação de palavras por aglutinação, é também encontrada no Malone em português. Estranho + escuridão, por exemplo, gera “estranhidão” — uma mistura, aliás, particularmente feliz, pela instintiva associação do estranho com o escuro.

Ser traduzido é sonho de muito autor. Traduzir-se é feito que poucos, muitos poucos alcançam. Beckett chegou lá, em pelo menos dois sentidos. Traduziu obra sua para a língua materna — suprema glória. Traduziu-se também em sua literatura, expondo, no texto desesperado, o desespero que era seu e de sua geração — uma geração que atravessou duas grandes guerras e tinha ainda uma terceira no horizonte.

Beckett e Leminski morreram no mesmo ano, 1989. Leminski ainda jovem. Beckett já ancião: não nonagenário como Malone, mas já entrado na casa dos oitenta. Dois escritores singulares, num único volume.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho