A falta que não faz a crítica da literatura traduzida

Literatura traduzida, não há dúvida, é também literatura. Literatura que vai, às vezes, além do original.
01/08/2005

Literatura traduzida, não há dúvida, é também literatura. Literatura que vai, às vezes, além do original. E, às vezes, fica aquém. Mas é obra literária e, como tal, atrai e merece a crítica. Que há. O que não há, ou há poucas vezes, é a crítica que leve em conta, na tradução, não apenas o original, mas também o texto traduzido. O que não há, ainda, é a crítica da literatura traduzida. Que falta faz?

Existe todo um campo quase inexplorado na crítica da literatura traduzida. No Brasil, esse campo, sabemos, é enorme, em função do grande volume de literatura traduzida publicada. Não é exatamente uma crítica que faço aos críticos, que, convenhamos, já têm trabalho suficiente apenas com o original, ou com o que se julga ser o original. Também não falo da crítica da tradução em si, do trabalho do tradutor, de sua competência no ofício. Falo da crítica do texto traduzido, como literatura que pretende ser.

Há aí toda uma dimensão a ser explorada, mas que não é. Vez em quando se lêem, aqui e ali, em críticas de obras traduzidas, breves comentários sobre a habilidade — aliás, geralmente sobre a falta de habilidade — do tradutor. Mas a coisa parece se esgotar aí.

Raramente se vai além. A obra traduzida é uma obra a quatro mãos, por mais que se possa discutir a contribuição de cada par. Não deixa de ser trabalho a quatro mãos. O texto traduzido, por outro lado, traz elementos e aspectos que são mais caracteristicamente dele do que do original, embora — e aqui sou otimista — não percam o vínculo com o original. Traz peculiaridades derivadas da língua, da região do tradutor. Traz a marca de sua época. Traz um traço pessoal.

A complexidade da crítica da literatura traduzida está em criticar, também, justamente a “parte traduzida”. Não vejo como algo fácil. Exige uma dupla análise — quando uma já é, talvez, demais. Quando muitas vezes o crítico, ou o resenhista, não tem acesso ao original — ou se tem, não dispõe de tempo nem paciência para releituras ou cotejos. O tempo urge, as páginas devem ser lidas e viradas com rapidez.

O leitor, que não tem nada com isso, acaba sem orientação quanto ao que realmente está lendo. Compra, por isso, gato por lebre. Lê a crítica como se estivesse lendo a crítica do original. Mas não é. A crítica é de outro texto, que se supõe exatamente igual ao original. Não é a crítica da literatura traduzida. É uma aproximação — vá lá —, dessas que tornam a vida suportável e válidas as teorias. Mas é apenas uma aproximação.

Sendo realista, parece não haver mesmo como ser diferente. Qual a alternativa? Alongar a crítica para que alcance o original, o processo tradutório e ainda o resultado, o texto traduzido? Haveria quem o fizesse? Haveria leitores que suportassem a pachorra?

Abstraindo aspectos práticos, quase incontornáveis, a literatura traduzida ainda aguarda sua crítica. Aguarda o reconhecimento de seu status de, também, literatura. Criticar o texto traduzido, afinal, não pode ser a mesma coisa de criticar o original, na língua do original.

Há diferenças que deveriam ser levadas em conta. Há a cor local. Há os decalques, os lampejos, os deslizes. Há as evasivas, os extravasamentos, as extravagâncias, os circunlóquios. Há os atalhos, as retas que encurtam meandros, os excessos de concisão, os requintes de um estilo que existe ou não no original. Há as substituições deliberadas, bem ou malsucedidas. Não se sabe se haverá espaço para tanto.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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