A voz meio esganiçada de criança ultrapassa os limites do muro aqui de casa: “Tio, tem livro?”. Não sei exatamente qual delas me interroga. Já me acostumei com os passinhos apressados, o jeito moleque de transitar pela vizinhança, sempre grudadas à proteção da mãe ou do irmão mais velho. São gêmeas. Desde o início, desisti de tentar encontrar alguma diferença física entre ambas. E muitas vezes estão vestidas com roupas iguais. São um espelho a refletir uma felicidade que talvez só habite a infância.
Minha filha M. — uma menina magrela que por ora encara o mundo no ritmo e na alegria de passos de hip-hop — sonha ter um cachorro. Com um jeito meio traquina, une as mãos em louvor a um pai nada sagrado e implora: “Pode ser um bem pequeno, um bem bonzinho, que não coma os livros”. Eu, pai dissimulado que sou, costuro desculpas mais que esfarrapadas, frágeis pedaços de frases: “É possível; vou pensar no assunto com calma”. Ou seja, nada que serene os ânimos caninos de uma filha.
Elas — minha filha e as duas irmãs — são amigas há algum tempo, mas raramente se encontram. A lúdica vida das três é feita de desencontros e conversas rápidas. Mas agora há um cachorro que talvez lhes faça a mesma companhia. Não sei exatamente como, mas estão ligadas por Godô, um cão sapeca que chegou pelo correio. Penso nisso enquanto varro os ciscos de uma pinha que despencou dos céus diante de casa. Aqui é comum chover pinhão. A temporada de tempestades já começou. “O que eu posso fazer” é uma pergunta genérica que me faço o tempo todo. Em especial pela manhã, quando varro o deck de madeira e o piso rente ao portão. Neste caso, o que posso fazer pelas duas irmãs. Na verdade, posso muito pouco. O máximo que consigo é diverti-las com frases banais e lhes dar livros de presente. Muitos livros.
Não lembro exatamente quando as conheci. Mas não esqueço a conversa com a mãe — uma mulher que aparenta carregar uma montanha nas costas como se fosse um simples pedaço de isopor. É o típico ser humano preparado para encarar grandes dificuldades sem pestanejar. Durante a pandemia, o marido (pai das gêmeas) morreu. Ela, a mãe, viu-se sozinha com os três filhos: as gêmeas e o menino, um adolescente esguio e calado. Passam com frequência em frente à minha casa. Moram no condomínio ao lado. As irmãs, de quase dez anos, têm uma síndrome rara que dificultou o início da fala e torna o aprendizado na escola mais lento que o das demais crianças. Há também uma rotina de médicos, fonoaudióloga, psicóloga, exames, consultas.
Sempre imagino que crianças têm brinquedos, mas lhes faltam livros em casa. Com isso, tornei-me um sujeito previsível: toda festinha (e como há festinhas neste mundo!) de criança, faço um improvisado pacote com ao menos três livros. Mães e pais agradecem com um sorriso. Às vezes, tenho a impressão de que o sorriso carrega certa ironia. M. garante que os amiguinhos estão cansados de ganhar “só livros”. Mas sigo fazendo os pacotes. Afinal, ignoro se são sempre os mesmos amiguinhos, as mesmas festinhas, as mesmas comidas frias e insossas, as mesmas gritarias, os mesmos pais bem-sucedidos. E sou, certamente, um sujeito previsível.
O diálogo com a mãe foi mais ou menos assim: “Tenho muitos livros. Se quiser, posso dar alguns às suas filhas”. Na verdade, um monólogo. A resposta talvez tenha sido um “sim” meio sem jeito. Não importa: a partir daquele dia, passei a entregar livros com alguma frequência à animada e extremamente amorosa dupla. Após muitas histórias, escolhidas com rigor e método, agora ouço com frequência “Tio, tem livro?”. Tornei-me um improvisado tio e uma espécie de livreiro maluco.
Um dia, ao entregar um livro sobre um cachorro, uma delas (e nunca saberei qual) reclamou com a voz pausada, como se medisse cada sílaba: “Eu gosto de gatos”. Mas abraçou o livro do cão e seguiu feliz para dentro do condomínio. Vasculhei a imensa biblioteca de M. — de onde retiro sorrateiramente os livros: além de tio, sou um ladrão de mim mesmo — e descobri que há poucos livros com histórias de gatos. Não lembrei deste detalhe ao contar a uma amiga (talentosa ilustradora e escritora) sobre a minha dupla de pequenas leitoras. Carinhosamente, ela enviou às gêmeas alguns livros autografados. Todos com as aventuras de Godô — um cachorro.
Uma tarde de sol — no meio de um dia apressado de trabalho —, encontrei a caminho do mercado o novo companheiro da mãe das animadas leitoras. Ele me cumprimentou e disse de repente “Muito obrigado por dar livros às meninas. A V. está lendo muito melhor agora. Ela lê o tempo todo os livros que o senhor dá”. Foi um susto. V. é uma das gêmeas e tinha dificuldades com a leitura. Agora, ao que parece, a leitura tornou-se mais leve, mais fácil. Não sei exatamente qual delas é a V. que lê melhor. Afinal, são lindamente iguais. A outra V. também deve ler bem. Sim, ambas são V. E acho que ambas preferem gatos a cachorros.
Naquele sábado, M. estava comigo e assistia tevê esparramada no sofá. O vozerio lá fora denunciava: as irmãs estavam prontas para ir a algum lugar. “Vamos ao cinema, tio”, disse V., sob o olhar atento de M., que saltara porta afora. Logo, as três meninas conversavam animadamente sobre o mundo das infâncias. “Tio, eu adorei o Godô”, disse de surpresa a outra V. Ou teria sido a mesma? “Eu já li várias vezes o Godô”, repetiu com entusiasmo. Minha filha M. não sabe que Godô é um cachorro que chegou pelo correio. Nas prateleiras de sua biblioteca, Godô ainda não late.
Entre os livros preferidos de M., um deles conta a história do gato Pipoca. Já o li dezenas de vezes. As páginas desgastadas, apesar de todo o cuidado, denunciam o amor pelo felino aventureiro, que saltita apaixonado pela vizinhança. Talvez tenha chegado a hora de trocar um gato por um cachorro. Mando Pipoca para as irmãs e peço em troca um Godô — acho que elas têm três ou quatro filhotes latindo na sala de casa. Com isso, resolvo dois grandes problemas: dou um cachorro para M. e um gato para as gêmeas.
E quando comprar para M. um cachorro “bem pequeno e bem bonzinho”, já teremos o nome: Godô.