O tradutor se vê obrigado a usar todo instrumento de pesquisa disponível. O autor, quando vivo e alcançável, será sempre uma fonte importante, embora nem sempre definitiva. Diz-se que, uma vez escrito, o texto deixa de pertencer ao autor e passa a ser propriedade do leitor. O autor o visita como alguém que o conhece bem, mas já com a autoridade arranhada, fruto do escorrer do tempo desde o momento da fixação no papel. A memória prega peças, e às vezes nem se percebe.
Em tempos de internet veloz, o contacto tradutor-autor é cada vez mais viável. Possível já era nos tempos da simples carta e seus caminhos lentos, tortuosos, inseguros. Guimarães Rosa correspondeu-se com alguns de seus tradutores. Curt Meyer-Clason e Edoardo Bizzarri, tradutores de Rosa, respectivamente, para o alemão e o italiano, trocaram longa e fértil correspondência com o escritor brasileiro.
Esse tipo de texto, as cartas e trocas de idéias entre tradutor e autor, são, algumas vezes, matéria-prima da melhor qualidade para quem quer mergulhar no universo da tradução. Quando os interlocutores são, por exemplo, Rosa e Meyer-Clason, o texto vale toda uma teoria. O contato parece ter sido tão enriquecedor para um como para outro. Meyer-Clason beneficiou-se de explicações que dificilmente encontraria em outro lugar — dado o hermetismo do texto —, enquanto Rosa pôde remergulhar em sua própria obra, com os olhos renovados pela distância. Pôde reavaliar sua obra, enxergá-la por ângulos novos e imprevistos. Mais que isso: esse contato lhe deu ocasião de refletir sobre tradução — algo que, talvez, não estivesse em sua cesta de interesses — e sobre a própria literatura — sua e de outros.
Nostalgia, a alegria de reviver momentos de inventividade, o espanto de descobrir coisas novas dentro de um texto que foi seu — ou, golpe de mestre das lacunas da memória, ver como novas as coisas há tanto tempo esquecidas. Um reencontro, por um lado, e um encontro com algo novo, por outro. O autor revisita seu texto, a mando do tradutor, e se compraz na contemplação vaidosa daquilo que é seu, e que, admirado, merece versão em outra língua, janela para outro mundo.
Ou momento de encontrar falhas que lhe passaram — ao autor — despercebidas. Ou, ainda, oportunidade de, com a cabeça arejada, descobrir novas e melhores possibilidades estilísticas ou mesmo novas linhas ficcionais: um novo rumo para história. Seria querer demais. Mas certamente não são poucos os autores que padecem dessa tentação. De querer — o autor — reescrever mesmo textos consagrados, movido por uma nova idéia, que arrebata, como o arrebatou aquela que ali se fixou, na versão original. Rosa, mesmo, se confessava a Meyer-Clason incorrigivelmente propenso a corrigir-se, a aperfeiçoar um texto que, para muitos, já alcançara a perfeição.
O texto inclassificável, esquivo, travesso, de Rosa, é ao mesmo tempo uma cruz e uma dádiva para o tradutor. Ali está a oportunidade de maravilhar-se e de criar algo realmente novo, numa nova língua. Mas o preço a pagar é um lento progredir, um trabalho de verdadeira e caprichada lapidação. “A excessiva iluminação, geral, só no nível do raso, da vulgaridade”, resume Rosa. O texto é duro e só se deixa penetrar pelo duro trabalho do cinzel. Ora na mão do leitor, ora na mão, mais calejada e ferida, do tradutor.