Tradução literária é tarefa suficientemente complexa quando feita entre línguas que utilizam o mesmo alfabeto. Digamos, inglês e português. O processo se complica um pouco mais quando os alfabetos são diferentes, ainda que com pontos de contato mais ou menos reconhecíveis, como é o caso de português (alfabeto latino) e russo (alfabeto cirílico). O problema atinge paroxismos quando se trata da tradução entre línguas que usam sistemas completamente distintos de expressão gráfica. Chinês e inglês, por exemplo. Para complicar um pouco mais: poesia chinesa antiga (de três milênios, digamos) ao inglês contemporâneo.
Há aqui pelo menos quatro grandes complicadores: 1) a relação entre línguas de sistemas gráficos muito distintos; 2) a tradução de poesia (poesia sempre representa complicação para o tradutor); 3) a grande distância cultural e geográfica; e 4) a distância temporal.
Tarefa para poucos, sem dúvida. Tarefa que o poeta e tradutor americano Jerome P. Seaton, especialista em literatura chinesa, encarou em The Shambhala Anthology of Chinese Poetry (Shambhala, 2006). Não tenho a pretensão de analisar a qualidade da tradução, pois não tenho acesso (em vários sentidos) aos originais chineses. O texto final, contudo, é inequivocamente ótimo. Também excelentes são os comentários que o leitor encontra ao longo do livro, tanto na introdução geral quanto na apresentação de cada parte da obra (dividida segundo as diversas fases da poesia chinesa, da dinastia Zhou [1.100 a.C.] ao século 20).
A nova antologia chinesa de Seaton, como já o indicou algum resenhista, é o resumo da obra de toda uma vida dedicada à tradução e ao estudo da literatura chinesa. Representa, também, a conjunção de tudo o que pode haver de mais complexo no campo da tradução. Ao traduzir do chinês para o inglês, ou para qualquer outra língua ocidental, as referências e os pontos de apoio são excessivamente débeis. É normal perguntar se, afinal, a tarefa é minimamente factível. A poesia chinesa é traduzível para o Ocidente? A resposta pode ser sim ou não, mas o fato concreto é mais do que evidente. A obra está nas mãos do leitor; a dúvida é meramente teórica e retórica (embora exista).
O chinês, em seus vários dialetos, é expresso em ideogramas (ou, se quisermos detalhar mais, em pictogramas, ideogramas e elementos fonético-significantes). Seja como for, não se trata de alfabeto tal como o conhecemos, mas de uma forma gráfica totalmente diferente e consideravelmente mais “rica” em termos de possibilidades de significação. As conseqüências para o tradutor beiram o trágico — ou o mágico, se se decide por uma visão positiva do problema. As alternativas de tradução se multiplicam não apenas pela natureza mesma do texto poético, mas pelo caráter do sistema gráfico chinês.
O fato de o sistema chinês exprimir idéias, e não fonemas (ou pedaços de palavras), abre todo um campo de trabalho criativo para o tradutor, que, se competente, pode tirar o máximo proveito das características sugestivas e sensoriais da língua de partida. A aterrissagem, contudo, é problemática demais, por implicar forte redução de um universo mais amplo. Seaton parece ter feito uma aterrissagem competente. Mereceria uma boa tradução para o português.