À saída do “mês das mulheres” e às portas do abril das revoluções (bem na véspera do sexagésimo ano do funesto golpe militar no Brasil…), vamos cá avivar o fogo do caso das três Marias, um caso da literatura portuguesa do século 20 que foi levado a julgamento pelo governo fascista da época e ganhou a defesa pública de outras escritoras pelo mundo, sendo considerada a “primeira causa feminista internacional” nos anos que antecederam o 25 de abril de 1974.
Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa são as três Marias que estiveram sob a mira do Estado Novo português com a publicação, em 1972, de Novas cartas portuguesas, livro que escreveram juntas, nisso reescrevendo e repensando as cartas seiscentistas de Mariana Alcoforado, a freira de Beja entre real e imaginada.
Essa primeira edição, pouco dias depois do lançamento, foi recolhida e destruída pelo governo de Marcelo Caetano sob a alegação de “conteúdo insanavelmente pornográfico e atentatório da moral pública”. Quem diria que, mais de cinquenta anos depois do escândalo que causou, esse livro teria sua primeira edição brasileira e, no contexto do novo século, mesmo dentro de uma ordem democrática, encontraria uma literatura brasileira também na mira de estratégicas censuras.
O escândalo das três Marias era moral e linguístico, sociopolítico e literário, tocando no tabu da guerra colonial, nas meninas postas em sossego pelos bons costumes, no jugo institucional da família católica, entre outros cabrestos, e que sofisticado escândalo!, a baralhar a autoria no imiscuir de vozes, copulando com outros textos e autores. Em cartas, poemas, ensaios, lá vão as escandalosas descolonizando corpo e espírito da mulher, expondo desavergonhadas suas vergonhas, pasmando os varões que ainda têm por certo a mulher entre suas posses, sendo por lei que a honradez dela, de pudica, sustente a sua, de senhor das terras e dos povos.
Sofisticadíssimo incômodo, esse que recupera a figura e a febre da freira enclausurada no convento de Beja para dar corda à linhagem de três séculos seguintes de Marias e Anas que também escandalizaram entornos hipócritas com suas palavras e seus corpos. Vale um bom divertimento imaginar quais seriam as partes consideradas “de maior atentado à moral” pela Polícia Judiciária que interrogou as escritoras, tentando extrair a autoria de cada texto, o que elas sempre se recusaram a revelar. Seriam por acaso aquelas páginas fogosas em que Mariana de Alcoforado se masturba na cama da sua cela, toda úmida, rompendo a clausura num espasmo? Ou talvez as páginas em que o cavaleiro de Chamilly sorve com a língua seu fruto intumescido e doce de suco? Ou, quem sabe, alguma página das tantas que arregaçam histórias de suicídio, abuso psíquico, incesto ou crime de honra?
Outro bom divertimento é imaginar, entre os censores que leram As novas cartas portuguesas, naquela época, uns que suaram na calada da noite em terríveis sonhos lúbricos, justamente por causa das tais partes atentatórias. Ah, essas perversas! Promíscuas fugidas aos arreios e aos cercados! Como desonram seu senhorio, pois não? E agora? Como fazer parar essas monstruosas, assim, sem fogueira, sem convento e sem aprisco doméstico a serviço da descendência de seus amos?
A sentença do caso das três Marias se dissolveu na vaga da Revolução de abril de 74, então vieram as traduções da obra em outros países, novas edições comentadas, estudos acadêmicos, debates em seminários, colóquios internacionais. Agora, finalmente aportam aqui, essas insultuosas novas cartas, de muitas Marias, Anas e Marianas descolonizadas. Resta ver quanto ainda podem escandalizar aos fiscais de alma e cu.