A vida adulta de Jesus de Nazaré é normalmente reconhecida pelo viés teológico. Pouco se fala de seus últimos dias pelo relato político. Homem talhado por uma região há séculos severamente oprimida, Jesus começou a chamar atenção por difundir ideias que questionavam as obrigações impostas ao povo pelo Império Romano. Contestava o controle da terra, negava-se a pagar os pesados impostos. Não demorou, portanto, a ser visto como alguém capaz de cativar uma revolta popular, um líder revolucionário que traria problemas para Roma, caso não fosse detido. Foi acusado de atentar contra o Estado, julgado, flagelado e condenado à morte por crucificação. As mãos e os pés perfurados por pregos, e o golpe final de uma lança que lhe atravessou o peito.
Forte como a morte usa das marcas físicas desta passagem cristã como elementos catalisadores de sua trama. No mais recente romance de Otto Leopoldo Winck, as cinco chagas abertas no corpo de Jesus são ressignificadas em seus simbolismos sacros, partindo de uma dimensão sobrenatural, mística, para contextualizar um cenário rural cujo substrato vai além do magma religioso. Um mundo que rivaliza os escritos católicos com a percepção do poder de controle de tais preceitos, plasmando um espaço de tensões ambivalentes, no qual a realidade externa e interna de seus personagens servem como fator de caracterização. O divino e o pedestre separados por uma membrana tênue, por onde se desvela a relação entre devoção e manipulação, por onde se ilumina a prática da fé como instrumento político, de permanência de um estigma social.
A trama se divide em quatro tempos narrativos, sendo dois deles o passado e o presente da protagonista. De uma família de imigrantes poloneses no interior do Paraná, Rosália acorda num domingo de Páscoa com feridas nas mãos, nos pés e no peito. Seus pais, humildes lavradores, a princípio sugerem uma causa banal, mas quando as chagas passam a verter sangue, recorrem ao médico que, sem explicação científica, aconselham procurar o padre tendo em mente a Paixão de Cristo. O ambiente em que vivem é regulado pela prelazia do campo e o sacerdote tão logo se vê diante de um milagre no corpo da menina, os estigmas que, nos testemunhos milenares, atribuíam a santos e mártires a capacidade de cura, de proceder graças vinculadas à divindade-humana do Crucificado.
Anos mais tarde, Rosália está casada e mãe de três filhos, integrando um assentamento de sem-terra que invadiu uma fazenda considerada improdutiva. A aparição das chagas e seus supostos propósitos ficaram na memória soterrada pela dureza da vida, enquanto lida com misérias de natureza material e imaterial, fantasmas das próprias escolhas e os reveses do marido envolvido num núcleo de resistência que mancomuna estratégias para armar os camponeses contra as ameaças de expulsão por parte do dono do latifúndio. Por ali também circula o padre Hugo, cujo fluxo de consciência será mais uma parte desta montagem de fragmentos polifônicos. O jovem sacerdote passa por uma crise existencial, questionando a temência a um Deus que não usou de Sua glória para poupar Seu filho do sofrimento da cruz, que se coloca superior ao calvário dos homens, distante das ações da pastoral da terra, das mazelas de um ambiente de conflitos rurais, de violência e morte por espaço. A esta história mental associam-se breves inserções de registros primitivos do cristianismo que dão conta da Kenósis, conhecida como doutrina do autoesvaziamento de Cristo.
Desmitologização
Winck coloca o leitor em contato direto com a realidade brasileira do campo e do mandato religioso, alternando-o entre a luz e o breu da cognição, de modo a articular uma saga familiar e uma saga pessoal pontuadas por elementos das mais variadas procedências, entre os quais temas regionais, evangelhos, arcaísmo e intertextos. No decorrer da leitura, porém, a estrutura de vertentes múltiplas vai se decifrando um engenhoso plano geométrico cujas faces vão se sobrepondo e se espelhando, um prisma (e aqui pode ser entendido de maneira física, filosófica ou bíblica — a manifestação divina representando a glória de Deus) que vai se movendo até se revelar uma nova perspectiva, um ângulo inesperado que muda a compreensão de toda a história. É um texto superpovoado, denso por vezes, profuso até, mas muito bem engendrado. Prova disso está na forma perfeita com que se mune da matéria ficcional para incorporar o senso crítico, utilizando o contexto literário para ressoar seus comentários sociais. Inclusive a expressão incontida do enredo vem da experiência sematológica de uma personagem: a desmitologização; ou seja, “a necessidade de purgar os textos escriturísticos dos interesses mitológicos e mágicos inerentes à cosmovisão das comunidades em que foram gerados”.
Quando Rosália foi alçada a santa, por conta dos estigmas, uma peregrinação começou ter o sítio onde morava como destino, em busca de curas, milagres. Não demorou para uma ideia de se lucrar com isso ganhar forma, assim como a atenção da mídia e a sugestão de charlatanismo. Já adulta, no assentamento dos sem-terra, o mesmo jornal que, décadas atrás, reportava suas chagas trazia uma matéria na qual um representante do movimento rural declarava que a agricultura familiar era um resíduo do passado, esvaziando a reforma agrária e demonstrando uma complacência com os interesses dos latifundiários. O livro estabelece, assim, um paralelo em que fica patente o desejo de mostrar que, tanto na indução da fé quanto da política, o caminho para o fanatismo decorre de uma manipulação que oblitera propósitos com falsas ideologias ou a ilusão dos mitos. Jesus não foi crucificado por ser filho de Deus, e sim por subverter o sistema. “O que importa é o sentido, não o fato”, chama atenção o padre Hugo. A imaginação é um campo fértil para você plantar suas próprias sementes ou permitir que alguém plante as dele.
Na estruturação de um romance, um dos componentes menos levados em conta é o tom. Mas é justamente este que contém o traço marcante da intenção do texto. Winck explora os territórios ambíguos da devoção, embora deixe bem claro os signos que irão modular a inflexão interna da narrativa ao evocar, logo na primeira frase do livro, A metamorfose, de Franz Kafka. Um autor autodeclarado ateu, que concebeu um clássico sobre os efeitos sociais na condição humana, não está ali por acaso. Forte como a morte é uma obra ostensivamente plural, aberta à irradiação de sentidos, que diz muito mais do que concentram seus desígnios