As nuvens no pergaminho do céu

Fernando Paixão: "Prefiro começar a escrever sem a companhia dessas dilemáticas senhoras. Elas [dúvidas e certezas] aparecem depois sem serem convidadas."
Fernando Paixão, autor de “Poesia a gente inventa” Foto: Ivson Miranda
01/03/2024

Fernando Paixão nasceu em Portugal e ainda na infância, no começo dos anos 1960, chegou ao Brasil. Durante 30 anos atuou como editor da Ática, atividade profissional que o faz ainda hoje gostar “de ler no papel impresso”.

O trabalho no meio editorial correu paralelamente à própria produção literária, como poeta e ensaísta. O livro Rosa dos tempos, de 1980, marca sua estreia. Em 1989, retornou com o lançamento de Fogo dos rios, seguido de 25 azulejos (1994). Publicou também Poesia a gente inventa (1996), voltado para as crianças. Em 2001, venceu o Prêmio APCA com os poemas de Poeira.

Neste Inquérito, Paixão fala um pouco mais sobre seu processo criativo. “Começo lendo as páginas anteriores; se estiverem boas, o dia começa bem. Mas nem sempre é assim”, diz o autor, que desde 2009 leciona literatura no Instituto de Estudos Brasileiros, da USP.

Ele também cita autores que, em seu entendimento, público e mercado editorial deveriam prestar mais atenção. “Uma poeta: Maria Lucia dal Farra, entre as melhores da atualidade. Um poeta: Rubens Rodrigues Torres Filho, que morreu em dezembro passado.”

Ainda em 2024, o escritor publica a Antologia do poema em prosa no Brasil, reunindo 100 poetas desde o século 19. E prepara também um livro de ensaios sobre o tema.

• Quando se deu conta de que queria ser escritor?
História clássica: tive na adolescência uma professora de português que me despertou para os primeiros versos e para os primeiros sonhos eróticos.

• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Comecei a trabalhar no meio editorial no tempo da linotipo, portanto não abandonei o gosto de ler no papel impresso.

• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Gosto de observar as nuvens no pergaminho do céu.

• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Lula, qual seria?
Um retrato pioneiro e atual das ditaduras latino-americanas, que começou a ser escrito há um século: O senhor presidente, de Miguel Angel Astúrias.

• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Não acredito em “circunstâncias ideais”, cada escritor desenvolve o seu modo e método para gestar e botar o “ovo”.

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Olhos abertos e pensamento vazio.

• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Começo lendo as páginas anteriores; se estiverem boas, o dia começa bem. Mas nem sempre é assim.

• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Sentir a sensação de que um texto ficou bem-feito logo na primeira versão (coisa rara).

• Qual o maior inimigo de um escritor?
O narcisismo exagerado.

• O que mais lhe incomoda no meio literário?
A alta concentração do sistema literário brasileiro nas mãos de poucas editoras, empresas e órgãos de imprensa. E que só aumentou neste século.

• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Uma poeta: Maria Lucia dal Farra, entre as melhores da atualidade. Um poeta: Rubens Rodrigues Torres Filho, que morreu em dezembro passado.

• Um livro imprescindível e um descartável.
Considero O livro do desassossego um espanto, pode ser lido em qualquer canto do mundo. Quanto aos descartáveis, melhor esquecê-los…

• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
O uso inadequado da primeira pessoa — tanto na prosa como na poesia — costuma ser uma doença infantil dos escritores.

• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
No âmbito da arte literária, é proibido proibir-se.

• Qual foi o lugar mais inusitado de onde tirou inspiração?
Ao visitar a Capela dos ossos, em Évora, saí de lá com alguns versos na cabeça, que depois se completaram. Inusitado porque o poema veio de fora para dentro.

• Quando a inspiração não vem…
O melhor é ter humildade para reescrever o que ficou ruim.

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
José Paulo Paes, a cujo enterro não pude comparecer por estar em viagem. Muita coisa para conversar…

• O que é um bom leitor?
Aquele que vai além, o que lê o que não lê.

• O que te dá medo?
A violência incorporada como hábito cotidiano, 24 horas por dia na vida e nas diversas telas com que se convive.

• O que te faz feliz?
Conversar com minha mãe, de 97 anos, sobre nossa vida na aldeia da minha infância.

• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
Prefiro começar a escrever sem a companhia dessas dilemáticas senhoras. Elas aparecem depois sem serem convidadas.

• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Não ter preocupação.

• A literatura tem alguma obrigação?
É melhor que ela nos leve para longe das obrigações.

• Qual o limite da ficção?
Não permitir que a autoficção a contamine por completo, pois obedecem a dois ritmos diferentes.

• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Entregaria a ele as biografias de Martin Luter King e de Nelson Mandela.

• O que você espera da eternidade?
Que seja apenas éter, sem idade.

Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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