Na história da confrontação entre tradução e original, parece ser menos raro o trajeto original-tradução que o inverso. É mais comum (embora, de resto, pouco comum, a não ser entre estudiosos ou estudantes) ler primeiro a tradução da obra e depois, encantado com ela, buscar conhecê-la no original.
O trajeto inverso é mais raro, pelo próprio peso do original e o conseqüente menor valor conferido à tradução. Lembro-me de pelo menos um caso em que fiz esse caminho contrário. Li a tradução de Dom Casmurro para o inglês, realizada por Robert L. Scott-Bucchleuch, algum tempo depois de reler a obra no original.
Causou-me boa impressão o trabalho do tradutor britânico. Sua tradução acabou se tornando famosa, pelo menos nos círculos literários, não no Reino Unido, mas no Brasil. A razão: Scott-Bucchleuch havia deixado de fora uns quantos capítulos do original.
O tradutor britânico não era nenhum novato na tradução quando encarou Dom Casmurro. Parecia gozar de certo respeito em círculos literários brasileiros. Em 1982, Scott-Bucchleuch comentava, na coletânea A tradução da grande obra literária (Editora Álamo), que não se sentia obrigado a estudar profundamente a teoria da tradução, a não ser por mera curiosidade. Dizia, ainda, ter poucas teorias sobre o ofício tradutório, mas teorias fundamentais. Como a necessidade de simpatia do tradutor pelo autor do original. Ou a idéia de que o tradutor deve tentar imaginar como o autor escreveria na língua da tradução, se isso fosse possível. A tradução não deveria apresentar indícios de ser, na verdade, versão de outro texto. Deveria soar natural, como fosse escrita, como original, pelo próprio autor.
São teorias, ou estratégias, que cada tradutor incorpora, geralmente em função da própria prática, às vezes por força do estudo. As teorias de Scott-Bucchleuch não são nada desprezíveis. Talvez tenham sido elas as responsáveis pela mutilação de Dom Casmurro. Não duvido. Ele muito bem podia acreditar, sinceramente, que, para soar mais natural, o texto original precisava ser encurtado, pelo menos em alguns pontos. Tratava-se, enfim, de reduzir medidas para adaptar o texto de Machado aos padrões de naturalidade do inglês.
O fato é que Scott-Bucchleuch, digamos, fez alguns ajustes no texto. Capítulos inteiros foram deixados de lado (mas os capítulos de Dom Casmurro, pelo menos alguns deles, são bem curtos). Talvez não façam mesmo falta.
Quando li o texto em inglês, sinceramente não senti falta nenhuma. De fato, não percebi que o texto fora encurtado. Qualquer especialista notaria na hora. Desavisado que sou, passou-me despercebida a estratégia de Scott-Bucchleuch. E, heresia das heresias, cheguei mesmo a acreditar que em inglês o clássico machadiano estava melhor. Capitu parecia mais oblíqua e dissimulada com whirlpool eyes do que com olhos de ressaca. Talvez por falta de imaginação minha. Ou por não explorar todos os sentidos de “ressaca”. Mas os tais “olhos de redemoinho” davam a impressão de que o interlocutor corria ali o risco de se embriagar (e ficar de ressaca?), ou, pior, ser tragado por aquele olhar. Talvez tenha sido isso o que aconteceu com Bentinho. E então Scott-Bucchleuch captou a intenção mais íntima de Machado. E escreveu como o faria o autor em inglês.
O fato é que, em inglês, vi Dom Casmurro com outros olhos. Eis o mistério da tradução.