De próprio punho

A escrita e suas tecnologias sofrem interessantes metamorfoses, numa ciranda que vai do simples bilhete aos originais de um livro
Ilustração: Thiago Lucas
16/01/2024

Estranhei muito na primeira vez que escutei a expressão “de próprio punho”. Parecia que eu ia bater em alguém. Não era bem o caso. Foi numa situação bancária, dessas bem burocráticas, e eu devia escrever algo bem breve, mas com minhas mãos. Na verdade, o que importava era a autenticidade da minha caligrafia, que à época ainda era mais fluente e firme. Depois dos teclados de computador, ela rateia bastante. Minha letra, hoje, tem uma espécie de bipolaridade: dia sim, dia não, trêmula e firme, forte e fraca, mais rotunda e mais cheia de arestas. Na época do episódio com o banco, que, se não me engano, dizia respeito a fechar uma conta (que eu jamais quisera abrir, aliás), o negócio era escrever com minha mãozinha, expressando minha letra e minha assinatura, que são só minhas, segundo confiam as perícias e polícias científicas.

É claro que já escrevi muito mais de próprio punho ou, numa palavra mais bonita, manuscrevi (prefiro a mão ao punho, embora ele também seja usado na tarefa). Mas isso não é um feito individual. Em larga medida, é social. Muita gente sente o mesmo que eu, isto é, escreve bem menos usando as mãos, ou melhor, empregando algum tipo de tecnologia (lápis, caneta etc.) para escrever por meio de grafite ou tinta ou giz ou carvão ou sangue e o que mais. É importante lembrar que ainda há gente que não sabe escrever neste país, neste planeta, mas muita gente sabe e tem um combo de tecnologias mais ou menos à disposição para isso. Sou dessas pessoas privilegiadas que têm várias possibilidades, e uma delas nunca deixou de ser o uso das minhas mãos. Ainda hoje, são elas que batucam meu teclado de computador ou que tocam suavemente duas ou três telas sensíveis. Mas não expressam mais a minha letra. No lugar, aparecem Times New Roman, Arial, Calibri e mais uma centena de “letras” à minha escolha. Eu e Deus e o mundo.

A despeito desse rol de chances e ferramentas para escrever, o manuscrito nunca deixou de pintar aqui e ali, muitas vezes como obrigação. Na escola, por exemplo, até hoje ele é soberano. No Enem também. Curioso, não? Fico pensando em que espaços e ocasiões ainda uso minha letra. Olhando ao redor, na minha casa, minha letra está em espaços muito delimitados e específicos: bilhetes. Eles estão principalmente na cozinha, em especial na porta da geladeira, a fim de manter a comunicação com meus coabitantes sempre muito esquecidos ou relapsos. Mas também há bilhetes em post its na minha mesa do escritório, textinhos em garranchos por meio dos quais me comunico comigo mesma, a evitar um comportamento esquecido e relapso. E há uma dinâmica diversa nisso. Os recados de geladeira estão lá faz tempo: “Nunca colocar comidas diferentes no mesmo pote”, “Não pôr o frango na gaveta de cima sem um prato por baixo”, para alguns exemplos. São regras meio fixas que devem ser lembradas sempre ou que se explicitam ad hoc, a depender da porcaria que os outros fizeram. Daí as regras nascem: depois de avaliações negativas e efeitos desastrosos. Na parede, diante da máquina de café, “favor retirar a cápsula usada da máquina, pelo amor de Deus”. O “pelo amor de Deus”, até em outra cor e com mais pressão, foi feito depois da constatação de que o “por favor” não surtia efeito algum. O apelo a Deus parece ter feito os devidos ajustes.

No escritório, costumo ser mais suave comigo mesma, mas também muito mais lacônica, ao ponto de nem eu me entender, se passar o tempo. Por agora, são estes: “entrevista Hallewell, ver”, “IPTU merda”, “senha do SEI da UFRN”, “prestar contas ANPOLL”, “atenção estorno Gol cartão”, “Vanessa cards, Paula contas, lista Núdia” (e não sei mais a que se refere esse último). Em todos os casos vai minha letra, menos e mais redonda, a lápis e a tinta azul, em post its rosa-choque, colados precariamente, e todos com destino à lixeira, em breve. Justo porque eles funcionam como lembretes de tarefas e coisas que devem ser vencidas e, claro, substituídas por outras, num fluxo infinito, às vezes ansiogênico, com que a maioria dos adultos (e mais ainda as adultas) precisa conviver.

Meu namorado escreveu um livro inteiro manuscrito, nos anos 1990, bem no início. Ele guarda os originais de papel. Mais de três décadas depois, quando pensa em rever o material e republicar, quem sabe, precisa pensar sobre as enormes mudanças que atravessamos em termos de leitura, escrita, possibilidades, tecnologias e práticas de ler, escrever, ouvir e assistir. Acho que escrevi um livro ou dois com minhas mãos, depois os bati a máquina e nunca mais precisei fazer isso. Quase não tenho originais manuscritos, mas tenho vários impressos. As formas de escrever mudam, as necessidades também, e o resultado é um elenco complexo, em que nada dispensa nada, a depender da tarefa ou da importância das coisas ou de suas funções, claro. Alguém se lembra do cheque? Agora, em janeiro de 2024, um cartório me deu a possibilidade de pagar algo com cheque. Na hora, além do estranhamento e de me lembrar que ainda carrego um resto de talão na carteira, fiquei em dúvida se ainda saberia preencher. Cheque já foi exercício em livro didático, pasmem. Na atualidade, tive de debater com meu filho para que ele abrisse uma conta bancária “normal”, isto é, que lhe desse a possibilidade de tirar dinheiro vivo em um caixa eletrônico, coisa que a maioria dos bancos digitais não permite. O garoto entendeu e cedeu, mas não sei se já precisou de cédulas. Há de precisar, porque vive me pedindo as minhas. Humpf.

A escrita e suas tecnologias incríveis vão se reposicionando, mudando de status, numa ciranda interessante e importante que pode ser vista à luz de certa diversidade que encontra suas oportunidades e seus efeitos, aqui e ali. Não adianta muito pensar sempre como se tudo fosse excludente. Estão aí minha farta comunicação por bilhetes, minha gaveta alegre de post its de toda cor, esperando para serem usados, e o cheque do cartório, em que quase tudo já é digital. “Do punho ao pixel” não é uma frase filosoficamente correta. O negócio é mais “o punho e o pixel”.

Ana Elisa Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É autora de livros de poesia, conto e crônica, infantis e juvenis, tendo estreado com um volume de poemas em 1997. Teve colunas fixas em algumas revistas desde 2003 e publicou quatro livros de crônicas reunidas: Chicletes, Lambidinha & outras crônicas (Escribas, 2012), Meus segredos com Capitu (Escribas, 2013, semifinalista Portugal Telecom), Doida pra escrever (Moinhos, 2021) e Nossa língua & outras encrencas (Parábola, 2023). É professora da rede federal de ensino e pesquisadora das mulheres na edição.

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