Energia é o que se ganha no processo tradutório. É o que se agrega ao original, enriquecendo-o com o espírito do tradutor — pelo menos no campo do ideal. Conjunção de espíritos, a tradução se faz com atrito e sutileza: autor e tradutor disputando espaço no mesmo texto.
Atrito da disputa, sim, que gera energia e induz criatividade. Renova a lâmina do texto, dando-lhe estampa nova e novo colorido. Fere mas traz em si o lenitivo: armas leves, cortes delicados, fina operação cirúrgica que incisa em rasante. Sutilezas de tradutor, que arma trama nova sobre velha rede.
Com atrito e sutileza, transporta-se energia de texto a texto. Do original à tradução. Só energia, só espírito. O corpo verbal não se deixa levar, diria Derrida. Letra morta, morta fica no velho texto. Leva-se o espírito, em transmigração que depura o texto e expurga o corpo. Leve o novo texto, pronto para o frescor de novas interpretações.
Tradução é contato, fricção. Dedo que fere a corda, faz vibrar, vence a inércia e arranca a música. Luz e calor que brotam do olhar que fere o texto. Novo olhar sobre letras mortas.
Roçar constante — suave — do olhar do tradutor sobre o original. Que outro modo haveria de traduzir? Persistência até que brilhe a inspiração em forma de nova interpretação.
Traduzir exige maturação. Não se faz — não se deveria fazer — de uma só vez. Não de uma só leitura. Não na primeira leitura. Há que gastar e rasar a superfície do texto — até, quem sabe, brotar da rasura fibra nova, novo feixe de sentidos.
Rearranjar conceitos, em busca de efeito renovador. Raspar o texto, cinzelando novos sentidos a partir de velhas mortas palavras. Não só o tempo separa original e tradução, não só a distância. Os separa a diferença que existe entre letra morta e texto vivo.
Rapar rente ao texto, levantando o leve coalho que sobrenada. O espírito, não o corpo. E na remontagem, recriar todas as arestas e asperezas que fazem o deleite da literatura.
Energia é o que se ganha no processo. A energia de uma nova leitura, luz clara invadindo os recessos sombrios do passado original. Energia que se traslada ao texto traduzido. Aclarando sentidos. Renovando significados.
O texto traduzido é o original mais energia. Só, o original não funciona como texto. Exige alma, mais alma, mais vida. Qualquer leitura o incendeia, mas a tradução — leitura privilegiada — marca o início de seu novo brilho.
O tradutor verte no texto o vigor de uma nova mirada. Movido pelo impulso da descoberta, tem como meta não a transferência, mas a transformação.
Transformação é a forma velha mais energia. O velho conjunto de palavras mais interpretação. O autor mais o tradutor. Duas mentes que trabalham o mesmo texto, em diferentes momentos.
A tradução aparece como elemento de fissura do original. Fissura, fuga de energia. Ferido, fissurado, o original dessangra sentidos. Reter e modelar esse fluido morno e pastoso — até solidificá-lo em novo original — é a tarefa do tradutor.
A mera possibilidade de não haver tradução perturba o original. É a dor antecipada da perda do sentido — o temor do esquecimento de que padece o original. A tradução surge como esperança de cura.
Esperança que se manifesta em energia. Motor de novo texto. Motor de novas múltiplas leituras. Novos leitores que, traduzindo eles mesmos, serão como elos nessa longa, longa cadeia de transmissão de sentidos.