Dois irmãos, duas galáxias

O A arredondado perdeu os contornos, tomou outros caminhos e transformou-se em silêncio
01/11/2009

Há distâncias que a mão de Deus não alcança. Eu e meu irmão.

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Nossos corpos compartilhavam o calor na exígua cabine do caminhão. A longa viagem parecia infinita aos gestos infantis. Inquietos, observávamos tudo que, aos poucos, deixávamos para trás. Dividíamos a excitação da novidade: C., seus ruídos e suas covas nos esperavam. Nem desconfiávamos de que o futuro seria de silêncio, distância e indiferença. Nosso pai viera primeiro — um desbravador cego em uma terra em que a enxada, o ancinho e a boca de poucos dentes nada valiam. Em breve, teria de trocar a habilidade de cultivar a terra pela insanidade de desviar de carros, gentes e monstros nas ruas de C. Motorista de floricultura. Pelo menos, a terra não abandonara suas unhas.

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Éramos cinco: o motorista, minha mãe e nós três, as crianças. Não lembro muito bem de minha irmã naquele trajeto. Em breve, ela nos escaparia por entre os dedos. Fomos incapazes de ampará-la. Com sua morte, aquela família cabe com mais facilidade na cabine de um caminhão. Nunca estivemos tão próximos como na viagem sem retorno. Da boca, não saíam palavras — um bafo de amanhecer por entre a neblina nos aquecia mutuamente. Em silêncio chegamos a C., após percorrer a distância de uma infância no meio do nada para outra de espantos.

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A mãe seguia para a roça com um balaio. Eu berrava à sua ausência. Lutava contra os cuidados de meu irmão. Vencida, a mãe retornava, jogava-me no balaio e seguia para o relento. Eu ficava perdido em alguma sombra. A mãe cavoucava a terra em busca de vida. Retornaríamos no fim do dia. Em casa, meu irmão e minha irmã compartilhavam a infância. Se soubesse que a nossa infância seria tão curta, teria chorado menos.

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Orgulhava-me vê-lo desenhar as letras na folha improvisada. Minha mãe guiava-lhe a mão. Eu era incapaz. Um ano e meio nos separavam. O A saía-lhe redondo, bojudo, grávido de significados. Tinha um futuro brilhante, diria o lugar-comum. Rumamos juntos na manhã em que as aulas começaram. Ele com o A a pulsar entre os dedos; eu com a ignorância a mover-me. “Chamem a professora de tia”, disse-nos a mãe com um carinho que até então desconhecíamos.

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Hoje, desenho letras que ele não entende. Entendo o significado que ele tenta dar às palavras. São todas meio mancas, titubeantes. Miro-lhe com curiosidade. Tento resgatar aquela manhã em que seguimos lado a lado para a escola. Impossível. O A de meu irmão não é mais redondo — um útero seco, cujos significados parecem nos dizer quase nada.

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Na foto, apenas ele sorri. Tímido. Somos todos os cinco. Minha irmã parece não estar ali; fixa o olhar em uma lonjura indefinida. Logo, ela não estará mais em nenhuma fotografia. Ao fundo, o altar da primeira comunhão. Santos e anjos nos observam. Nossa mãe sempre tentou nos levar ao encontro de Deus. Conseguiu durante bom tempo. Depois, nos extraviamos por caminhos mundanos. Há distâncias que a mão de Deus não alcança.

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A morte de nossa irmã trouxe-me um desajeitado abraço de meu irmão. O único de que tenho lembrança. Um encontro de corpos silenciosos. Um encontro seco e abrupto. Os seus braços envolveram-me como se a dizer que ainda restava algo. Não sabíamos muito bem o quê. Nem no momento dos gols do nosso timinho de infância nos abraçávamos. Ele, goleiro. Eu, atacante. Acho que desde sempre nos mantivemos a uma distância insuperável. Adulto, resolvi virar zagueiro para, quem sabe, rondar-lhe os passos. Mas já era tarde. Nunca mais jogamos futebol juntos. E quando o fizemos, os silêncios e diferenças já tinham construído entre nós um muro muito mais sólido do que o dos cedros atrás do gol infantil.

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Quando ele disse que não iria mais ao colégio, éramos ainda crianças. Por volta dos 13 anos. Não entendi como aquele menino que aprendera, muito antes que eu, a desenhar letras redondas e bojudas tinha coragem de desistir. “Vou apenas trabalhar.” A promessa cumpriu-se à risca. Hoje, sobe em telhados, conserta calhas, pinta paredes. Tem habilidades que meus dedos definem como impossíveis. Em alguma das raras vezes que o encontrei, disse-lhe: “Se você tivesse continuado a estudar…” Ele apenas abaixa a cabeça. Teríamos mais assuntos? Seríamos menos estrangeiros de nós mesmos? Conversaríamos sobre o vasto mundo que nos abocanhou, mastigou e cuspiu? Falaríamos sobre Um copo de cólera? Nunca saberemos.

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Chegamos juntos espremidos na cabine do caminhão, esquentamo-nos na proximidade dos corpos, descobrimos aquele mundo de flores e brincadeiras, cortamos árvores para fazer as traves do campinho de futebol, estropiamos os dedos no terreiro de pedregulhos, ensaiamos um abraço no gol contra o time adversário, rumamos para a escola, A arredondado, grávido, ele sempre mais forte, sentia-me seguro, brigamos pra valer, brincamos de carrinho de rolimã, empinamos pipa, trabalhamos entre samambaias, rimos da tunda desferida pela mãe, corremos da mãe, escondemo-nos no mato, nunca choramos juntos, conhecemos Deus, nos perdemos Dele, beijamos as mesmas meninas, começamos a trabalhar ao mesmo tempo, ele desistiu da escola, eu insisti nela, nunca gostei de bicicleta, ele sempre em cima delas, tinha habilidades que não me seduziam, aprendeu a dirigir ainda na adolescência, sozinho, eu, só beirando os trinta, contra a vontade, um dia o silêncio chegou, construído desde sempre, nem notamos, invadiu tudo, tomou conta do nosso mundo, caminhávamos em direções opostas, os caminhos se bifurcavam, não nos víamos mais, não falávamos, enfim, acabou. Restou apenas um silêncio. Incômodo.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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