Na lápide, os nomes serão iguais

Uma maldição por entre as frestas da tapera, um pouco antes do fim do mundo
01/01/2010

Nascemos amaldiçoados. Uma maldição caseira. A tapera de frestas obscenas insinuava que ali a felicidade demoraria a chegar. Ou nunca ousaria ultrapassar os limites dos ralos pés de milho e feijão. Alguns metros adiante, o fim do mundo era a única saída. Um dia tomamos o caminho contrário e, vomitados feito lavagem, desembocamos em C. — a cidade cuja única escapatória são buracos nas nuvens. A velha não nos olhava, preferia os porcos que engordavam com dificuldade soltos pelo terreiro. A cada parto, nas ranhuras da terra esquecida, ouvia-se a maldição: “nasceu mais um diabinho”. Fomos três pequenos demônios a rasgar a carne tenra, saudável e sagrada da mãe.

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Quando o pai disse que a avó viria passar uns dias em casa, senti medo e raiva. Após a chegada, sentiria também pena e desejo de vingança. Até o dia em que seria depositada no caixão e lançada a terra para sempre. Habitávamos outra tapera, com menos frestas, em C. Tínhamos a companhia de samambaias e azaléias. Nosso terreiro era pedregoso. Estropiávamos os dedos a chutar a bola de plástico. Não éramos vermelhos, não tínhamos rabo e, tampouco, pequenos chifres. A maldição parecia ter falhado. No fim, acredito, ainda tentará nos alcançar a todos. Eu nunca quis encará-la nos olhos. Durante três dias, revirei-me na escuridão. Lá fora, uma tempestade. Minha mãe queria dar-me à luz. Cheguei em meio a trovões, relâmpagos e um maldizer. Da parteira, não sei o nome. Não havia energia elétrica, a água vinha da serra ou do açude. Espíritos espreitavam aquelas terras. Comala e Pedro Páramo eram nossos vizinhos. Quando, enfim, abandonei o corpo lasso da mãe, a voz estridente da avó já nos rondava. Às vezes, ainda rezo antes de dormir.

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Feito um fantasma, você chegou. Não nos pediu licença. Trouxe quase nada. Uma mala desprezível abrigava as roupas para um breve descanso. O derradeiro. O que você teria para trazer? O que teria para nos oferecer? Não tínhamos esquecido a maldição. Ninguém esquece. Mesmo longe daquele mundo a esfacelar-se, neste alvoroço de gentes e carros, com apenas um porco no chiqueiro atrás de casa, impossível esquecê-la. Somos animais amaldiçoados a zanzar pela cidade grande. Já viu um boi perdido numa avenida movimentada? Aqui, é comum um cavalo amanhecer destroçado embaixo de um poste. Lugar estranho, sei. Não há pés de milho ou feijão. Os terreiros são de concreto e solidão. Difícil construir o búlico para o suicídio das bolinhas de gude. Então, jogamos no triângulo. Somos outros. Você não entenderá. Você, serpente fora do hábitat. Não, eu não esperava um beijo da tua língua bífida ou um abraço de tentáculos e garras. Nunca esperamos isso de você. Da sua boca, somente o escarro. O escárnio. Nas noites insones, o ronco da morte a cavoucar-lhe as entranhas. Foi um trabalho lento, de faca sem fio, a destruir-lhe cada pedacinho do corpo envelhecido e estraçalhado pelo distante abandono. Mas a maldade não se apagava do olhar. Quieto, no quarto dividido com o irmão, acompanhei cada segundo que lhe restava. Sabíamos que seriam poucos. Temia a sua companhia tão próxima, no cômodo ao lado, a sufocar no mergulho noturno. Éramos todos zumbis à espera do fim. Logo cedo, a cuia de chimarrão na mão, o cigarro de palha entre os dedos, o barulho dos pulmões, num esforço insano para lhe dar mais alguns golpes de vida. Uma fábrica às bordas da falência. Em volta do fogão a lenha, você começava o dia — os teus últimos dias —, após agonizar a noite toda na cama que lhe emprestamos. Acolhemos o teu fim. Ver o inimigo tombar diante de nós não nos causava nenhum prazer. Sabíamos que a morte não decretaria nunca o seu desaparecimento. Já fincara as presas que desenharam em nós um mapa de perdição. Deveríamos abandoná-la? Não era necessário. Você partiu sozinha e esquecida. O avô partira muito tempo antes. Por que nunca nos contou nenhuma história dele? Ele bebera até o corpo transbordar. A morte lhe chegou cedo demais. Carregava brasas nas tripas. Morreu incinerado numa valeta. Não lembro do seu rosto. Poucos pedaços dele nos foram relegados. Até mesmo o sobrenome você nos roubou. Queria que levássemos — para o inferno? — apenas a tua marca, a tua herança. Imagino você no cartório a registrar os dois filhos somente com as pegadas da tua família. Quem era a tua família? Nós? De um dos teus filhos, recebi este sobrenome, vindo das tuas mãos. Carrego esta cicatriz que, se não a renego, pertence-me apenas pela metade — animal leproso a vaguear pelas encostas do mundo. Não lembro do dia em que partiu. Recordo-me apenas que fomos de ônibus ao hospital na periferia de C. Estranho vê-la naquele lugar asséptico e branco. Tudo ali contrastava com o seu corpo cadavérico, acobreado e inerte. Não nos restou nenhuma fotografia na parede. Talvez em alguma gaveta. Onde a enterraram? Também não sei. Não visitamos seu túmulo. Não por vingança ou descaso, mas por medo. Talvez você esteja na cozinha a nos observar. Aquela casa ainda existe. Parte de nós a habita. Às vezes, passo por lá. No lugar do fogão a lenha, um a gás tirou um pouco da vida que circundava as panelas da cozinha. O teu provisório quarto também está lá, transformado em depósito de entulhos inexistentes. A casa e todo o resto acostumaram-se à morte. Outras passaram por ali. Houve lamentos e gritos de desespero. Sei que contigo foi diferente. Não foi nossa culpa. Nesta maldição não há culpados.

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Poucas vezes, compartilhamos a mesma mesa. Nossas refeições sempre foram feitas de ausência e silêncio. No domingo, batizado do neto, meus pais acolheram-me. Havia muita gente ao nosso redor no restaurante. A comida não vinha de fogão a lenha. Não ouvíamos quase ninguém. Ele a contar-me a trajetória da família, os descaminhos até chegar a C. Eu a perguntar sobre os antepassados. Tudo envolto numa espessa lembrança, difícil de penetrar. Desconhecemos muito da vida que nos trouxe até aqui. Ela, orgulhosa, revelou-me que, sim, casaram na igreja e no cartório. Nenhuma foto. Havia uma alegria oculta em suas palavras. Certa altivez da bênção divina. A avó também se sentou conosco, ao lado dos nossos outros mortos. A mesa de quatro lugares repleta de fantasmas e histórias. Na lápide, meu nome será igual ao dela.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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