Traduzir é, também, buscar, no original, as marcas que deverão reaparecer no texto vertido. Marcas identificáveis, que representam o âmago, a alma do texto e que, ao mesmo tempo, se prestam à transposição para outro meio, outro tempo, outra língua. Busca vã, dirão. Busca incontornável, porém. Busca de toda uma vida para o tradutor, mas que não lhe dará nada além da amarga e solitária satisfação do dever cumprido. Bem lá no final de todo um processo. Quem o entende, o tradutor?
Marcar o texto traduzido com as arestas que mais machucam no original, que provocam as mais agudas percepções — sentimento de divina sublimidade ou vertigem de atirar-se na fossa mais profunda da falta. Afinal, é dessa substância — palavras que provocam paroxismos de beleza e dor, sentimentos desencontrados — que é feita a literatura.
Não se trata aqui da marca mesma do tradutor, que pode, por que não?, somar-se às marcas encontradas (ou descobertas?) já no original. Não quero dizer que o autor do original as colocou ali de propósito. Que importa? Não são supostas intenções que decidem a reação ou interpretação do leitor; incidem outros fatores mais agudos, como a carga literária do leitor. O background pode valer mais, aqui, que a mera intenção do autor, a qual talvez simplesmente não encontre eco no leitor médio.
Cuidado com as intenções vãs ou simplesmente supostas. Vãs, não darão necessariamente resultados esperados. Supostas, não se encaixarão nem no sentimento do autor nem na interpretação do leitor. A “verdadeira intenção” do autor pode não passar de mais uma interpretação — entre tantas — e viver como verdade apenas para fomentar infindável debate.
Mais valem as marcas identificáveis, aquelas que se destacam na topografia do texto e perfuram a memória do leitor — como máquinas antigas varavam cartões de memória para armazenar informação. São essas marcas que perduram, de algum modo, a ponto de significar, para o leitor, a essência da obra. Marcam o texto — intencionalmente ou não, pouco importa — e balizam o trabalho do tradutor. Nonada não são, mas significâncias. Estão aí, soltas no texto, para a busca inglória do tradutor. Valores literários a serem garimpados e traduzidos.
Faz também parte do ato tradutório marcar o texto original antes de reescrevê-lo. É algo que, aqui, vai além da mera identificação das marcas preexistentes. Trata-se, agora, de processo de valoração — com algo de idiossincrático, mas muito de convencional. Entra no texto a alma do tradutor, como para possuí-lo e torná-lo não mais de um, mais de pelo menos dois — quando não de tantos quantos seus leitores. É processo criativo, sem o qual a tradução perde muito de seu charme e, até, sua própria razão de ser. Entra o tradutor a lançar marcas no texto, para depois recriá-las em texto novo. Marcas de um esboço. Balizas.
A discussão sobre o literário — sobre o que torna um texto literário — pode ser encarada como o próprio germe da tradução. Está ali, em semente, todo o debate interno, dentro do tradutor, sobre o que capturar do texto — sua essência literária — para transplantar em outra língua. Brota ali a própria ânsia de traduzir, para preservar o que se considera valioso. Existiria razão mais nobre para traduzir?
Vale descartar o que não é literário — ou o que não se supõe literário? Mais vale registrar as marcas — suas e do próprio texto — e deixar todo o debate para os críticos.