🔓 Pintando o próprio rosto

01/10/2012

Alfabetos é uma antologia de ensaios que, em síntese, trata da formação de Claudio Magris enquanto leitor. Certamente, nas páginas que aqui se apresentarão, de modo muito prazeroso e espontâneo, o grande escritor, germanista, ensaísta e pensador triestino quer nos fazer cúmplices do inquietante percurso do que — ele mesmo denomina — sua “Odisséia literária”. E, de fato, pouco a pouco, vamos sendo convidados a partilhar do fascínio e desafios dessa infindável viagem, rumo ao universo das leituras e autores que o foram marcando, ao longo do tempo. Essa trajetória tem início na infância, quando sem ainda saber ler, ouvia, atento e curioso, as histórias que sua tia Maria lhe contava, principalmente alguns trechos de Os mistérios da floresta negra, de Emilio Salgari. O menino, então, com apenas seis anos, passa a decifrar o alfabeto e mergulha na segunda parte daquelas aventuras, que representarão seu primeiro encontro efetivo com a palavra. Na seqüência, virão os chamados “livros de leitura”, que contemplam os álbuns de cães do pai (cinólogo apaixonado), passam pelas enciclopédias, chegam aos textos da “Biblioteca dos povos”, como o Mahabharata e o Ramayana até os chamados “livros que deixam marcas absolutas”, como a Ilíada, a Odisséia, o Antigo e o Novo Testamento. Confessa, ainda, ter recebido uma certa entonação em sua própria arte de narrar, por influência dos grandes escritores épicos, especialmente e muito de Tolstoi e também de Melville, Guimarães Rosa, Faulkner, Sábato, Nievo, mas em igual medida e fundamentalmente de autores, por ele muito amados, como Ibsen, Kafka, Svevo e todos os que traduzem de modo intenso a odisséia sem volta, o desajuste da existência, atingindo, no limite, uma autolesiva e culpada expiação, tais como Céline ou Hamsun.

O longo e infindável inventário desse processo de formação acaba por constituir, assim, segundo o que ele mesmo afirma, a sua “carteira de identidade” e, em meio ao amplo leque de temas abordados pelos estudiosos da Teoria da Leitura e da Literatura, Alfabetos toca, muito de perto — para dizer o mínimo — nas complexas questões entre Literatura, Leitura e Identidade.

Mas o que é importante ressaltar é que Magris não permanece apenas na leitura de caráter impressionista, arrebatado pelos aspectos de ordem subjetiva, em relação aos textos e autores que elege como principais formadores de seu ser literário. Vai muito além do reconhecimento afetivo dos mesmos, conferindo-lhes a consistência e a densidade da análise minuciosa do leitor, capaz de mergulhar nas entrelinhas e nas entranhas daqueles alfabetos a decifrar, com o rigor e o método necessários à crítica literária fecunda, que jamais se perde em divagações estéreis. Daí porque estes seus escritos fujam do que Chesterton teria definido, no que diz respeito ao gênero, como o salto no escuro dos que correm o risco temerário de ensaiar escrever um ensaio. Com efeito, os ensaios de nosso autor já nascem prontos, bem acabados. Não deixam de se dedicar, também, com versatilidade — como já propunham Montaigne e Kierkegaard — aos mais variados assuntos, além dos literários propriamente ditos, tais como os da Felicidade, Coragem, Ira (apenas para citar alguns).

O que cumpre notar, entretanto, é que os modos de seu pensar se articulam sempre na busca do equilíbrio entre a leveza dos temas eleitos pelo coração e o arguto olhar do acadêmico estudioso, incansável nas investidas filosóficas que se obstina a propor. Disso decorre que não recairemos nos extremos desvios de uma crítica meramente impressionista, subjetiva e assistemática, nem tão pouco na que passou a ser freqüente, sobretudo, a partir da década de 60, com o uso abusivo de termos, cada vez mais científicos, que, no limite, teriam transformado a escritura, segundo Alfonso Berardinelli, em árido “quebra-cabeça, colagem de termos técnicos”.

O que caracteriza o ensaísmo de Claudio Magris é a justa medida, o estilo que não se perde nos caminhos traçados pela inevitável afinidade eletiva das preferências literárias, nem se fossiliza nos discursos engessados pelo rigor excessivamente especializado e cientificista das torres de marfim acadêmicas.

Assim é que, por exemplo, ao apresentar como lembrança inesquecível de leitura afetiva, a lenda de Savitri (uma das que compõe o Mahabharata, à qual ele teria tido acesso ainda na infância), com profunda erudição, estabelece um interessante diálogo entre aquela personagem hindu e Alceste, da tragédia narrada por Eurípedes, a que ele atribui a alcunha de “irmã grega” da primeira. E ainda, no mesmo estudo, intitulado Alceste indiana, encontraremos uma instigante proposta de aproximação — num viés comparatista, intertextual, antitético — entre o comportamento de Savitri e o de Orfeu, pois contrariamente a este, que fracassa no intento de trazer Eurídice da morte à vida, aquela  consegue resgatar o companheiro Satiavan das trevas.

Uma das reflexões suscitadas por esse estudo é, pois, o da reversão do protagonismo de Orfeu, assumido pela heroína hindu, cujas impressões digitais parecem ter deixado marcas significativas na personagem feminina do romance O senhor vai entender (2006) do próprio autor.

Num outro momento, no ensaio As alegrias do desclassificado, teremos um dos mais brilhantes estudos da atualidade sobre a linhagem de personagens que encarnam a negação absoluta ou a recusa total ao sistema, à la Bartleby, o escrivão, de Melville ou Wakefield, de Hawthorne, passando pelo genial pintor triestino Vito Timmel e ainda por Peter Klein do Auto de fé de Elias Canetti, todos em diálogo com a criatura perseguida do conto A toca de Kafka em que, de certa forma, a busca pelo desejado isolamento seria o único recurso a protegê-los da vida, já que, paradoxalmente, é esta a entregá-los à morte, na medida em que a tentativa de “defesa se torna idêntica à autodestruição”.

A respeito da obra de Joseph Conrad, em Nascer é cair no mar, aprofunda-se a temática do indivíduo desafiado pelo absurdo e desconhecido, encarando a deserção não apenas como fraqueza ou vileza moral, mas como uma das verdades da alma humana, em que haveria “uma disponibilidade de ser, mas também de não ser”, e em que o mar se equipara à vida, enquanto “encanto e horror, abandono e naufrágio, definhamento, imortalidade, destruição”.

É nesse mesmo mar/vida — guardando as respectivas diferenças contextuais de cada obra — que o protagonista Salvatore Cippico do romance Às cegas (2005) de Magris, por meio da sinuosidade de uma narrativa fragmentada, que oscila como um barco à deriva, levará adiante a sua viagem sem volta para casa, numa verdadeira “odisséia da desilusão”, que não deixa de ser, também, uma das mais profundas marcas da literatura contemporânea. Nesse sentido, cumpre observar o quanto o ficcionista e o ensaísta parecem andar de mãos dadas.

Com igual profundidade analítica, veremos desfilar diante de nós — entre tantos — Heródoto, Kipling, Benjamin, Jakob Bidermann, Daniel Defoe, Schiller, Novalis, Schlegel, Hoffman, Goethe, Grillparzer, Musil, Masoch, Turguêniev, Goncharov, Sologub, os muitos autores de Praga (no exaustivo estudo Praga ao quadrado), Fontane, os nórdicos Jonas Lie, Alexander Kielland, Bjørnstjerne Bjørnson, além de Thomas Mann, Brecht, Moni Ovadia, Gregor Von Rezzori, Norman Manea, György Konrád, Ryszard Kapuściński, Drago Jančar, Boris Pahor, Jorge Semprún, Enesto Sábato, as mães argentinas da Praça de Maio, John Banville, Hemingway, Faulkner, Mo Yan, Achebe, Ngugi Wa Thiong’, La Capria, Stefano Jacomuzzi, Camus, James Joyce e o elenco dos mais diversos autores e temas se abre ao infinito.

Conforme ensina Hans Magnus Enzensberger, em Mediocridade e loucura e outros ensaios, já que estes nossos tempos são marcados por um “analfabetismo secundário”, para o qual a mídia ideal é a televisão e que, em termos de crítica literária, vivemos um verdadeiro “crepúsculo dos resenhistas”, talvez seja bem oportuno, como resposta à crise contemporânea, mergulhar nestes exercícios de verdadeira realfabetização, propostos pelo professor de Trieste.

A propósito, retomando um dos contos de Jorge Luis Borges, a uma certa altura, Claudio Magris recorda a história do personagem que pintava paisagens e que afinal se surpreende, ao descobrir que havia pintado o próprio rosto. Se é verdade que isso é o que acontece a quem fala de livros, bom saber que a erudita precisão do manuseio das tintas literárias, que compõem estes Alfabetos, nunca borram, nem distorcem a imagem nítida e demasiado humana de seu artista/autor.

LEIA RESENHA DE ALFABETOS.

Rascunho