Alfabetos Ă© uma antologia de ensaios que, em sĂntese, trata da formação de Claudio Magris enquanto leitor. Certamente, nas páginas que aqui se apresentarĂŁo, de modo muito prazeroso e espontâneo, o grande escritor, germanista, ensaĂsta e pensador triestino quer nos fazer cĂşmplices do inquietante percurso do que — ele mesmo denomina — sua “OdissĂ©ia literária”. E, de fato, pouco a pouco, vamos sendo convidados a partilhar do fascĂnio e desafios dessa infindável viagem, rumo ao universo das leituras e autores que o foram marcando, ao longo do tempo. Essa trajetĂłria tem inĂcio na infância, quando sem ainda saber ler, ouvia, atento e curioso, as histĂłrias que sua tia Maria lhe contava, principalmente alguns trechos de Os mistĂ©rios da floresta negra, de Emilio Salgari. O menino, entĂŁo, com apenas seis anos, passa a decifrar o alfabeto e mergulha na segunda parte daquelas aventuras, que representarĂŁo seu primeiro encontro efetivo com a palavra. Na seqĂĽĂŞncia, virĂŁo os chamados “livros de leitura”, que contemplam os álbuns de cĂŁes do pai (cinĂłlogo apaixonado), passam pelas enciclopĂ©dias, chegam aos textos da “Biblioteca dos povos”, como o Mahabharata e o Ramayana atĂ© os chamados “livros que deixam marcas absolutas”, como a IlĂada, a OdissĂ©ia, o Antigo e o Novo Testamento. Confessa, ainda, ter recebido uma certa entonação em sua prĂłpria arte de narrar, por influĂŞncia dos grandes escritores Ă©picos, especialmente e muito de Tolstoi e tambĂ©m de Melville, GuimarĂŁes Rosa, Faulkner, Sábato, Nievo, mas em igual medida e fundamentalmente de autores, por ele muito amados, como Ibsen, Kafka, Svevo e todos os que traduzem de modo intenso a odissĂ©ia sem volta, o desajuste da existĂŞncia, atingindo, no limite, uma autolesiva e culpada expiação, tais como CĂ©line ou Hamsun.
O longo e infindável inventário desse processo de formação acaba por constituir, assim, segundo o que ele mesmo afirma, a sua “carteira de identidade” e, em meio ao amplo leque de temas abordados pelos estudiosos da Teoria da Leitura e da Literatura, Alfabetos toca, muito de perto — para dizer o mĂnimo — nas complexas questões entre Literatura, Leitura e Identidade.
Mas o que Ă© importante ressaltar Ă© que Magris nĂŁo permanece apenas na leitura de caráter impressionista, arrebatado pelos aspectos de ordem subjetiva, em relação aos textos e autores que elege como principais formadores de seu ser literário. Vai muito alĂ©m do reconhecimento afetivo dos mesmos, conferindo-lhes a consistĂŞncia e a densidade da análise minuciosa do leitor, capaz de mergulhar nas entrelinhas e nas entranhas daqueles alfabetos a decifrar, com o rigor e o mĂ©todo necessários Ă crĂtica literária fecunda, que jamais se perde em divagações estĂ©reis. DaĂ porque estes seus escritos fujam do que Chesterton teria definido, no que diz respeito ao gĂŞnero, como o salto no escuro dos que correm o risco temerário de ensaiar escrever um ensaio. Com efeito, os ensaios de nosso autor já nascem prontos, bem acabados. NĂŁo deixam de se dedicar, tambĂ©m, com versatilidade — como já propunham Montaigne e Kierkegaard — aos mais variados assuntos, alĂ©m dos literários propriamente ditos, tais como os da Felicidade, Coragem, Ira (apenas para citar alguns).
O que cumpre notar, entretanto, Ă© que os modos de seu pensar se articulam sempre na busca do equilĂbrio entre a leveza dos temas eleitos pelo coração e o arguto olhar do acadĂŞmico estudioso, incansável nas investidas filosĂłficas que se obstina a propor. Disso decorre que nĂŁo recairemos nos extremos desvios de uma crĂtica meramente impressionista, subjetiva e assistemática, nem tĂŁo pouco na que passou a ser freqĂĽente, sobretudo, a partir da dĂ©cada de 60, com o uso abusivo de termos, cada vez mais cientĂficos, que, no limite, teriam transformado a escritura, segundo Alfonso Berardinelli, em árido “quebra-cabeça, colagem de termos tĂ©cnicos”.
O que caracteriza o ensaĂsmo de Claudio Magris Ă© a justa medida, o estilo que nĂŁo se perde nos caminhos traçados pela inevitável afinidade eletiva das preferĂŞncias literárias, nem se fossiliza nos discursos engessados pelo rigor excessivamente especializado e cientificista das torres de marfim acadĂŞmicas.
Assim Ă© que, por exemplo, ao apresentar como lembrança inesquecĂvel de leitura afetiva, a lenda de Savitri (uma das que compõe o Mahabharata, Ă qual ele teria tido acesso ainda na infância), com profunda erudição, estabelece um interessante diálogo entre aquela personagem hindu e Alceste, da tragĂ©dia narrada por EurĂpedes, a que ele atribui a alcunha de “irmĂŁ grega” da primeira. E ainda, no mesmo estudo, intitulado Alceste indiana, encontraremos uma instigante proposta de aproximação — num viĂ©s comparatista, intertextual, antitĂ©tico — entre o comportamento de Savitri e o de Orfeu, pois contrariamente a este, que fracassa no intento de trazer EurĂdice da morte Ă vida, aquela  consegue resgatar o companheiro Satiavan das trevas.
Uma das reflexões suscitadas por esse estudo Ă©, pois, o da reversĂŁo do protagonismo de Orfeu, assumido pela heroĂna hindu, cujas impressões digitais parecem ter deixado marcas significativas na personagem feminina do romance O senhor vai entender (2006) do prĂłprio autor.
Num outro momento, no ensaio As alegrias do desclassificado, teremos um dos mais brilhantes estudos da atualidade sobre a linhagem de personagens que encarnam a negação absoluta ou a recusa total ao sistema, à la Bartleby, o escrivão, de Melville ou Wakefield, de Hawthorne, passando pelo genial pintor triestino Vito Timmel e ainda por Peter Klein do Auto de fé de Elias Canetti, todos em diálogo com a criatura perseguida do conto A toca de Kafka em que, de certa forma, a busca pelo desejado isolamento seria o único recurso a protegê-los da vida, já que, paradoxalmente, é esta a entregá-los à morte, na medida em que a tentativa de “defesa se torna idêntica à autodestruição”.
A respeito da obra de Joseph Conrad, em Nascer Ă© cair no mar, aprofunda-se a temática do indivĂduo desafiado pelo absurdo e desconhecido, encarando a deserção nĂŁo apenas como fraqueza ou vileza moral, mas como uma das verdades da alma humana, em que haveria “uma disponibilidade de ser, mas tambĂ©m de nĂŁo ser”, e em que o mar se equipara Ă vida, enquanto “encanto e horror, abandono e naufrágio, definhamento, imortalidade, destruição”.
É nesse mesmo mar/vida — guardando as respectivas diferenças contextuais de cada obra — que o protagonista Salvatore Cippico do romance Ă€s cegas (2005) de Magris, por meio da sinuosidade de uma narrativa fragmentada, que oscila como um barco Ă deriva, levará adiante a sua viagem sem volta para casa, numa verdadeira “odissĂ©ia da desilusĂŁo”, que nĂŁo deixa de ser, tambĂ©m, uma das mais profundas marcas da literatura contemporânea. Nesse sentido, cumpre observar o quanto o ficcionista e o ensaĂsta parecem andar de mĂŁos dadas.
Com igual profundidade analĂtica, veremos desfilar diante de nĂłs — entre tantos — HerĂłdoto, Kipling, Benjamin, Jakob Bidermann, Daniel Defoe, Schiller, Novalis, Schlegel, Hoffman, Goethe, Grillparzer, Musil, Masoch, TurguĂŞniev, Goncharov, Sologub, os muitos autores de Praga (no exaustivo estudo Praga ao quadrado), Fontane, os nĂłrdicos Jonas Lie, Alexander Kielland, Bjørnstjerne Bjørnson, alĂ©m de Thomas Mann, Brecht, Moni Ovadia, Gregor Von Rezzori, Norman Manea, György Konrád, Ryszard KapuĹ›ciĹ„ski, Drago JanÄŤar, Boris Pahor, Jorge SemprĂşn, Enesto Sábato, as mĂŁes argentinas da Praça de Maio, John Banville, Hemingway, Faulkner, Mo Yan, Achebe, Ngugi Wa Thiong’, La Capria, Stefano Jacomuzzi, Camus, James Joyce e o elenco dos mais diversos autores e temas se abre ao infinito.
Conforme ensina Hans Magnus Enzensberger, em Mediocridade e loucura e outros ensaios, já que estes nossos tempos sĂŁo marcados por um “analfabetismo secundário”, para o qual a mĂdia ideal Ă© a televisĂŁo e que, em termos de crĂtica literária, vivemos um verdadeiro “crepĂşsculo dos resenhistas”, talvez seja bem oportuno, como resposta Ă crise contemporânea, mergulhar nestes exercĂcios de verdadeira realfabetização, propostos pelo professor de Trieste.
A propĂłsito, retomando um dos contos de Jorge Luis Borges, a uma certa altura, Claudio Magris recorda a histĂłria do personagem que pintava paisagens e que afinal se surpreende, ao descobrir que havia pintado o prĂłprio rosto. Se Ă© verdade que isso Ă© o que acontece a quem fala de livros, bom saber que a erudita precisĂŁo do manuseio das tintas literárias, que compõem estes Alfabetos, nunca borram, nem distorcem a imagem nĂtida e demasiado humana de seu artista/autor.