o mar, no living

Conto de Altair Martins
Ilustração: Carolina Vigna-Marú
01/01/2010

O mar tudo recobre
sem nada asfixiar.
O mar, no living, Carlos Drummond de Andrade.

Hoje não se vê a draga, Ana disse. Para Guilherme, devia ser a vista do living, navio naufragado não se mexia. Depois ele foi até o vidro e vasculhou com os olhos da praia ao horizonte. A torre de engrenagens, normalmente a única parte visível do navio-draga há muito submerso, tinha mesmo sumido. Maré alta, ele concluiu. Era um perigo pros barcos que não eram da região. Mas, para Ana, a ferrugem podia ter derrubado a torre, não podia? Não, Guilherme já tinha mergulhado lá várias vezes, e o navio, mesmo corroído, não se entregava: era mais fácil acreditar que continuava dragando.

Ana ainda tentou avistar a draga, imaginando tola a idéia de um navio morto que se enterrava. Acabou desviando o olhar para o living e conferiu as horas.

O apartamento ficava à beira-mar. Pelos vidros das janelas, não havia como fugir do oceano. Os convidados deveriam estar chegando: salgadinhos e doces já estavam dispostos à mesa; refrigerantes e cervejas, gelados; depois haveria bolo. Guilherme e Ana se olhavam, buscando adivinhar, um no olho do outro, o que estaria faltando. Mas não achavam, e então voltaram a sondar o mar em silêncio. Decifravam uma mesma pessoa e sua teimosia.

Foi que Ana perguntou E se ele vier? Não tenho medo dele, Guilherme disse, e ela disse É, mas o clima vai ficar meio pesado. Então que não venha, ele disse. Mas, Guilherme, entende: esse apartamento, por exemplo, foi ele quem comprou. Se ele deu o apartamento pra ti, é teu, Guilherme respondeu. Mas ele é avô da Clarinha.

Imediatamente ficaram em silêncio. Clarinha. Precisavam acordá-la, já eram quase três da tarde. E Ana foi enfrentar os humores da criança, retirada da quietação e do conforto. E por isso Clarinha entrou no living vestida para sua festa, mas chorando, apesar de Ana embalá-la nos braços e mostrar-lhe a janela de onde se via o mar. Dentro do cercado, a menina acalmou-se com dois peixinhos de escama verde e sons de bolha dentro d’água.

Dali a pouco, a campainha começava, e os convidados chegavam em procissão: primeiro os padrinhos, depois alguns parentes mais próximos e primos de viagem distante. A mãe de Ana chegaria só, comentando pouco: a cabeça dura do marido, aquelas coisas de outros tempos, era possível que chegasse bem na hora. E Ana entendeu rápido que sua preocupação só cessaria após o parabéns. Guilherme servia as bebidas, explicava coisas sobre a praia aos que admiravam a vista da janela e, de vez em quando, abria a porta para mais algum convidado. Às quatro horas, todos os assentos possíveis do apartamento estavam ocupados.

Então, um pouco depois das quatro, quando preparavam o parabéns, o avô apareceu: da porta que a filha lhe tinha aberto, ele varreu os convidados com os olhos altos e, avistando a esposa, retirou a boina e aproximou-se lentamente. Pessoas que o iam reconhecendo vinham cumprimentá-lo pelo aniversário da neta, mas ele apenas se desviava com um sorriso duro. Clarinha estava nos braços do genro, no meio do living, e o avô fingiu que não os via. E estacado ao lado da esposa, ficou a observar os enfeites da mesa. Quando Guilherme lhe trouxe uma cerveja que ele recusou, desviando o corpo inteiro de algo muito inconveniente, muitas pessoas notaram, e tudo foi ficando pesado.

Primeiro os balões em branco e rosa, parecendo inflados de água, ameaçavam despencar ao chão. Em seguida os talheres de plástico, feitos de chumbo, caíam das mãos dos convidados e tinham de ser erguidos do soalho com desproporcional força. O mesmo aconteceu com as bandejas de doces e salgados, e os copos de cerveja ou refrigerante, e a vassoura trazida de última hora: tudo pesava, e as pessoas, constrangidas, faziam bastante força para que o ambiente se mantivesse com a inocência necessária a uma festa de primeiro ano. Cansado de segurar Clarinha, Guilherme foi o último a ceder: disfarçando o esforço, colocou a filha sobre a cadeira alta, de onde ela poderia ver a vela de número um ser apagada pelo pai e pela mãe tão logo terminasse o parabéns. A vela que assustadoramente se enterrava no bolo; o bolo que parecia não sustentar o próprio peso.

O avô, como não conseguiria reter o braço da esposa por toda a festa, encontrou uma poltrona magra de frente para o mar que, naquele momento da tarde, acenava espumas brancas. Dali viu sua mulher se divertir com as duas meninas. Ele não. E por isso, sólido de silêncio, virou os olhos para detê-los fixamente no horizonte. Pessoas vinham devolver-lhe o living, mas qual living? quais pessoas? A mulher, por exemplo: ela veio, Clarinha ao colo, convencê-lo a ir à mesa, iriam cantar o parabéns. Nem as duas juntas lhe demoviam os olhos retidos no mar.

Ele procurou a torre da draga e, não a encontrando, julgou que o espelho d’água o traía. O dragão invencível: havia comprado o apartamento por causa da vista e notara que era um navio — não uma rocha apenas — no segundo ano, quando só ele e a esposa vieram para as férias, e ele jurou matar Guilherme, compreendendo que nunca iria além da vontade. E enfim também ela, a vontade, cedeu, e ele restou cumprindo uma palavra áspera para si mesmo. Agora via o mar xucro, incontido. A falange de ondas avançava, rasgando as pedras e a carne sempre crua da praia.

Ana pediu que todos cercassem a mesa do bolo para que se cantasse o parabéns. Os convidados, puxando os corpos com enorme dificuldade, pareciam vultos de um asilo, e Ana percebeu que seu pai não sairia do sofá em que estava, diante do mar.

E então, mal a vela se acende, o mar entra no living, atravessando os vidros e ocupando, com azul e fauna, os espaços da festa. E posto seja mar e se comunique com o oceano, ele surpreende em ser tudo menos violento, e não apaga vela ou palma. Apenas que a festa segue, percebida pelos sentidos abafados. É a luz de uma vela sob o mar. É um parabéns afogado. São as raízes da fumaça dentro d’água. A seguir, o mau cheiro das algas que boiam. Por fim as coisas voltam a regular seu peso. E é este o resumo: o mar atravessa os vidros, e, borrados de azul, todos comemoram Clarinha, que se entretém com um cubo de números e letras, presente preferido da tarde. Todos aceitam o mar no living, farejando a festa e preenchendo os recantos mínimos. Todos, menos o avô que, agora olhando a totalidade da cena, escuta uma voz conhecida. Peixes cruzam o espaço sem ousadias de atacar a comida. Caranguejos cor de ferrugem correm pelo soalho, vasculhando as tocas e as considerando inadequadas. E contudo a voz os atravessa e alcança o avô e subitamente ele escuta que é estúpido, é estúpido, é estúpido. E é assim que, tentando avistar Clarinha, já não a encontra, escondida que está atrás de um cardume em que também se misturam as pessoas. E todas elas não o notam mais, não o vêem mais. Ele é o mar onde se esconde e por isso ele se ergue e caminha em direção a Clarinha, a quem agora avista nos braços da avó, e, quando se aproxima o suficiente para roubá-la da esposa e esquecer pela primeira vez que é um homem de palavra, eis que o mar começa seu recuo. O abano de espuma branca ganhará distância novamente e arrastará as algas de mau cheiro. Assim que a cabeça do avô emerge, feito ferro e coral, já ele é visto por todos e então caminha de volta à poltrona de onde vê o mar atravessar o vidro, cumprir todo o estágio de retorno da onda e devolver-se ao colo do oceano, agora vermelho no horizonte da tarde e transpassado de calma pela torre da draga vingadora.

Correndo sobre seu corpo, os caranguejos minúsculos cor de ferrugem procuram toca, assustados com o anúncio da primeira fatia de bolo.

Altair Martins

Nasceu em Porto Alegre, em 1975. É mestre em literatura brasileira pela UFRGS. É autor, entre outros, de A parede no escuro (ganhador do Prêmio São Paulo de Literatura em 2009, na categoria melhor romance de estréia). O conto o mar, no living pertence ao livro inédito Enquanto água.

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