Nos extremos

Obra de Hermilo Borba Filho sofre pelos elogios exacerbados da crítica e pela falta de leitores
Ilustração: Carolina Vigna-Marú
01/08/2012

Não somente a vida do pernambucano Hermilo Borba Filho foi de confessados excessos. Tudo que lhe orbita parece carregado de peso extra, é demasiado. A reedição da tetralogia de romances Um cavalheiro da segunda decadência não foge a essa gravidade: as notícias e análises que chegam (quando chegam) ou destacam excessivamente algumas poucas características de sua obra ou são elas mesmas fartas de adjetivos, expectativas, paixão. Há também aquelas que sublinham o excesso da ausência, lamentando o pouco espaço que o autor ocupa entre leitores e estudiosos brasileiros.

Algumas dessas recepções mais empolgadas minimizam ou mesmo ignoram o fato de os livros saírem pela Bagaço (editora local de Recife, espremida pelo gargalo da distribuição como poucas em nosso mercado). Também não parece ser relevante a falta de orelhas e outros textos de apresentação que cumprissem aquela função mencionada por Fernando Monteiro aqui no Rascunho (em introdução não publicada na tetralogia), de “preparar principalmente os mais novos para o encontro com uma obra tão sólida quanto negligenciada pela crítica retrospectiva”. Os quatro volumes receberam somente um breve texto de Maurício Melo Júnior, que nem pode nem se propõe responder a essa demanda.

E quem é Hermilo Borba Filho? Um desavisado que chegar à capital pernambucana e fizer essa pergunta provavelmente continuará sem saber. No máximo, uma de suas fontes lembrará que é nome de teatro no bairro Recife Antigo. Por outro lado, daqueles poucos bem informados, talvez escute que não é possível falar em teatro pernambucano sem citar o escritor, ou que sequer é aceitável discutir a cena cultural do estado no século 20 sem passar por ele. Hermilo está entre os extremos, desde a origem.

Nascido no Engenho Verde, município de Palmares, em 8 de julho de 1917, Hermilo Borba Filho viveu a decadência da civilização do açúcar. Filho de um dono de terras que perdeu quase tudo, ele gastou a infância entre águas, calçadas, paredes e pessoas de uma Zona da Mata em transformação, cuja elite agrária ainda relutava em se acomodar à nova realidade político-social, às demandas e promessas trazidas pelo processo de modernização do país.

Entre os antigos oligarcas, viúvos do universo dos engenhos, e a massa de marginalizados, Hermilo foi sempre por estes. Em Margem das lembranças, romance que abre a tetralogia, ambientado na Palmares dos anos 1930, o registro não chega como laivo nostálgico pela quase extinta era das moendas, serve mais para ilustrar a figura do pai, o “Capitão Hermilo”, peça tão importante em vários de seus livros. Para além desse sentimento pela decadência paterna, o que nasce e cresce na adolescência de rapazola do interior é a incontornável solidariedade pelos oprimidos, que mais tarde levará à defesa de que arte e política são inseparáveis, como de resto nenhuma atividade humana se pode apartada do mundo ao seu redor.

Foi também em Palmares que descobriu sua maior paixão, base de todas as outras atividades: a literatura (algo afirmado por ele mesmo diversas vezes, ainda que muitos prefiram vê-la como reflexo de sua militância teatral). Sua segunda casa era a biblioteca do Clube Literário da cidade. Lá, conheceu os clássicos de Dumas, Cervantes, Hugo, Dostoiévski, Tolstói, Stendhal, Dickens, Verlaine, Rimbaud e Machado, assim como os vergalhões para sua longa trajetória junto aos palcos:

Na biblioteca do Clube Literário, que havia sido a maior do estado, descobri, quando me entreguei ao teatro de dona Micaela, Gogól, Pushkin, Goethe, Schiller, Musset, Racine, Corneille, Molière, Shakespeare, Lope de Vega e Calderón, Goldoni, Ibsen e Strindberg, Alfieri, Bernard Shaw.

Hermilo — narrador em primeira pessoa dessa tetralogia tão inspirada na própria vida do autor — não se esqueceu de citar folhetins, literatura de cordel, livros de pornografia, Boccaccio e Marquês de Sade, embora o nome mais lembrado na fortuna crítica do pernambucano seja mesmo o de Henry Miller.

Comparação desmedida
Poucos temas nas resenhas e estudos sobre a tetralogia Um cavalheiro da segunda decadência são tão carregados de exageros quanto as comparações com o autor de Nexus, Plexus e Sexus, de quem foi tradutor e admirador confesso. A busca dessa filiação geralmente chega ao batido e vazio rótulo de “Henry Miller dos trópicos”. Sexo, vocabulário obsceno e status de maldito são tópicos/clichês que servem como atalhos, ao invés de sugerir análises esclarecedoras sobre seus escritos.

De fato, assim como acontece em Trópico de câncer (1934), a tetralogia é a jornada de formação de um artista, de um intelectual, recontada a partir de uma narrativa profundamente autobiográfica. O anti-herói Hermilo, porém, não se apresenta como modelo, não pode oferecer liberdade nem salvar o mundo com seu furor e talento, pois não está além da realidade que o cerca. Sua angústia, seus momentos de lucidez, suas convicções — nada disso o leva a crer que seja um redentor. Ao invés, ele caminha em direção à cruz.

Do Margem das lembranças (1966) ao Deus no pasto (1972), o narrador vai lentamente assumindo sua espiritualidade. Mas em momento nenhum pretende salvar. Se algo existe é uma atropelada busca por expiação, que não subentende constrangimento ou remorso. O protagonista arca com seus atos, até reforça suas cores, numa encenação que nem recai em culpa castradora nem se veste de orgulho devasso. O que em Henry Miller é choque, missão, instrumento de libertação, em Hermilo Borba Filho é a procura da palavra que dê autenticidade a esta narrativa onde sua personagem, primeiro descobre e percorre intensamente os caminhos do corpo, antes de a “presença d’Ele” tomar força no enredo.

O protagonista de O cavalo da noite (1968), terceiro volume da série, por exemplo, não possui aquela liberdade moral e espiritual dos personagens de Miller. Quando tentado a trair, ele repete o discurso de homem casado, monogâmico. E seus princípios éticos e políticos o impedem de usar atalhos que facilitem a nova vida em São Paulo. Se não deixa de pecar, de um livro para outro Hermilo fica menos afoito, suas transgressões vão se resumindo à resistência cultural contra o elitismo e o colonialismo, à resistência política contra o autoritarismo, e à desobediência controlada às orientações dos médicos sobre o que comer e o que beber. Quando enfim se separa da esposa, em Deus no pasto, é para ter a mulher que o acompanhará até o fim da vida. Ele faz da conquista desse novo amor um movimento que se harmoniza com a guinada espiritual do personagem.

Ao contrário do narrador de Trópico de câncer, o da tetralogia vai pouco a pouco se tornando menos saudável e livre. De certa forma, Hermilo nasce sob o signo da liberdade, a decadência do Capitão lega ao filho desapego e coragem, características que irão impulsioná-lo pelos quatro romances, ao mesmo tempo em que a idade, as derrotas e as injustiças sociais, se não o fazem fraquejar, vão lentamente tornando o personagem cônscio de que seu caminho não leva ao chão, mas à sua cruz particularíssima.

Em Deus no pasto, fecho da tetralogia, à decadência do corpo se junta a degradação da própria vida política brasileira com o advento do Golpe Militar. Ali, na cadeia, sob tutela dos algozes, sobrevivido à tortura, o narrador tem sua epifania derradeira:

Farto, lavei o rosto, a chuva era pesada, o céu continuava escuro, não haveria de passar nunca mais. Durou horas e eu tinha a minha provisão para mais algum tempo. Finalmente, foi se tornando cada vez mais fina, abriu-se um rombo azul no céu, houve um raio de sol, a sentinela saiu de sua casinhola. Dei alguns passos na cela, pensei em dormir, estava leve como o ar sorrindo. De onde estava, olhei pela janela e vi uma coisa insólita naqueles tempos: Deus, na campina, pastando tranqüilamente.

Longe do Miller tão citado, o narrador hermiliano não é profeta, não vem anunciar uma nova ordem, não se propõe derrubar barreiras. Ainda que bastante movido pelo sentimento de solidariedade, sua aventura é individual, expiatória (ao seu modo), nada utópica e muito mais modesta: “Teço, neste papel, um passado real às vezes e, outras, puramente imaginado na esperança de que no fim Deus confunda o que vivi e o que inventei e me dê um saldo favorável para uma modesta pensão no purgatório”.

Tampouco é correto falar em um “Hermilo maldito”, por mais que tenham insistido seus exegetas. Além de o lugar da marginalidade literária ser extremamente controverso no Brasil, nem o homem nem o narrador Hermilo combinam com os lugares-comuns geralmente atribuídos aos malditos. Em vida, ele foi um agregador, sujeito de muito mais amizades do que desafetos, com experiências na gestão cultural pública, etc. E seus livros, apesar das tiragens nada grandiosas, tiveram edições esgotadas, além de recebidas sempre positivamente pela crítica. O próprio Hermilo repetiu algumas vezes que não se via como um autor maldito. Se escandalizou ou ofendeu alguém, foi porque a obra pedia, não por navegar à margem da tradição literária ou dos círculos sociais.

Nem mesmo quando o assunto é o vocabulário pornográfico essas comparações são menos equivocadas. Ambos os autores defenderam que a obscenidade não está na escrita, no “palavrão”, assim como não está na pintura ou em qualquer conteúdo artístico, mas sim no espírito de quem lê, de quem vê. O papel do sexo e das palavras relacionadas, entretanto, têm dimensões bem diferentes nos dois escritores. O sexo na tetralogia hermiliana não se constitui em elemento central de uma jornada de sobrevivência, liberdade e salvação, tampouco o vocabulário pornográfico recebe aquele status de fetiche, de palavra viva e reflexiva, reveladora de forças insuspeitas. Ou melhor, se o recebe, não chega a guiar a narrativa. Em O cavalheiro da segunda decadência, o erotismo está mais relacionado ao flerte (nunca ingênuo) com o naturalismo, com a verossimilhança, a busca de uma acachapante autenticidade.

Em sua longa margem de lembranças, o narrador se afirma “de pés plantados na terra vomitando palavras”, não se esquiva daquilo que a memória modelada lhe pede somente porque pode soar violento, sujo ou obsceno. Tampouco a tetralogia se constrange com a possibilidade de algum leitor se sentir atingido pela narrativa, como explicou o próprio Hermilo Borba Filho, em entrevista concedida (e censurada) à revista Veja em 1975:

Dos meus dez livros de ficção, somente quatro — os que compõem um cavalheiro da segunda decadência — são escritos na primeira pessoa do singular, parecendo contar muita coisa da minha vida, escandalizando pela rudeza e pela nudez, a minha nudez e a dos outros, obsessivamente fiel à frase de James Joyce: “Não sei escrever sem ferir ninguém”.

Apesar de ter produzido pouco como crítico literário, em Hermilo a atividade criativa nunca estava divorciada das experiências teóricas. Ele tinha plena consciência de que, por mais “sincero” e corajoso que fosse, sua obra não estaria indo além de “parecer contar muita coisa” da sua vida. Sabia que não dividiria tudo com o leitor, que a ficção (seja ela inspirada em biografia ou não) é o universo do “pela metade”, e que aquilo que se narra é sempre algo refigurado. O que ele buscava, o efeito que pleiteava, porém, cobrava o seu preço, e ele estava disposto a pagar.

Caminhos possíveis
A obra de Hermilo Borba Filho sugere muitos e variados caminhos de análise, alguns dos quais já citados pelos seus comentadores, como o uso de epígrafes em todos os capítulos dos quatros volumes. Os excertos vão desde aquele anterior à abertura da tetralogia, um Lawrence Durrell de onde saiu o título Um cavalheiro da segunda decadência, até a assertiva de Henry Miller que fecha o derradeiro romance: “Constitui nosso privilégio sermos crucificados em nome da liberdade”. São epígrafes que, além de oferecerem portais para a própria leitura dos capítulos, dizem muito sobre as predileções literárias do autor, sobre seu interesse nas mais diversas dicções ficcionais.

Outro importante tema hermiliano é a figura do pai. Sua presença é tão forte que veste até mesmo outras personagens desde o seu primeiro romance, Caminhos da solidão, publicado em 1957. Na tetralogia, o narrador traz o Capitão Hermilo logo no início dessa memória ficcionalizada: o velho pai inaugura a galeria de lembranças e fornece elementos pelos quais o protagonista voltará às origens em diversos momentos. O próprio título O cavalheiro da segunda decadência entrega a pista a ser percorrida, onde o declínio do pai surge como metáfora da derrocada de um sistema social, das instituições, da tradição.

As ocorrências do falo nunca são gratuitas em Hermilo. Símbolo recorrente (assim como o da figura paterna), o pênis ancora uma identidade que tenta resistir à fragmentação, ao mesmo tempo em que estabelece o primado da linguagem, da metáfora, pois é sempre uma presença/ausência significante que transborda significados do cotidiano — demasiado mundanos — enquanto segue também como tronco seco e vazio, reminiscência, poço para o retorno do gado. Ao longo da tetralogia, o pai e o falo cedem espaço a outro símbolo da tradição e vereda de retorno: a espiritualidade, a “presença d’Ele”.

Assuntos bem mais visitados pelos comentadores de Hermilo são as relações entre memória e narração, história e ficção. O que não significa dizer que demandem menos estudos futuros. Até porque há uma esquisita tendência de subtrair o que existe de invenção na tetralogia, indo de encontro aos elementos de suspensão da realidade presentes na narrativa, ignorando as divergências entre dados descritos nos romances e documentos históricos, contrariando os próprios avisos deixados tanto pelo narrador como pelo autor de que Um cavalheiro da segunda decadência não é discurso confiável.

Ao invés de buscar o “real” nas cidades da tetralogia, de pesar a mão sobre a importância de seu testemunho para compreensão da realidade política e cultural da época, uma opção mais profícua e quase nada explorada é o papel dos deslocamentos nas (des)construções permanentes da identidade da personagem. Enquanto uma parte de Hermilo é contada pela ancestralidade, pelo falo, pelo tronco onde resistem e são assumidos preconceitos, fraquezas e gostos, outras faces da personagem são lapidadas pelo movimento, pelo desconhecido, pelo novo. As transições entre os quatro romances são marcadas por mudanças espaciais. Em cada fim de volume, o protagonista parece mais maduro, convicto, preparado para os acidentes e pescas futuras; ao começar o romance seguinte, no entanto, após nova mudança de cidade, Hermilo está outra vez em terreno desconhecido, reaprendendo as regras do jogo, juntando peças para os pratos da balança. A conhecida relação entre deslocamento e alteridade tem estância fértil em Um cavalheiro da segunda decadência.

Para comemorar
A tetralogia de Hermilo Borba Filho é uma empresa que tem sim seus altos e baixos. Até pelo ritmo e espírito com que foi erigida, existem passagens que destoam. Como alertou Jorge Luis Borges ao escrever sobre a falsa ética do leitor, poucos artifícios críticos são tão falsos e inócuos como o desgastado mito da palavra perfeita, da escrita irretocável. Para economizar argumentos, basta lembrar que a idéia de perfeição somente seria crível se a mensagem não dependesse do contexto e da recepção do leitor. Se o livro se completa a cada leitura, se ele se mantém vivo justamente porque é atualizado geração após geração, é pelas brechas, e não pela perfeição que ele respira.

Um cavalheiro da segunda decadência não precisa dessas opiniões excessivamente laudatórias. Esses quatro romances necessitam é ser lidos (qual destino mais nobre pode ser ambicionado?), e nada leva a crer que os exagerados elogios sirvam como convite eficaz. Dizer que Hermilo produziu uma obra-prima e que se destaca entre os prosadores pernambucanos é tão importante quanto afirmar que ele está entre os maiores da literatura nordestina, ou brasileira, ou das Américas, ou do mundo. Ou seja, importância quase nenhuma.

Se a crítica literária pode contribuir com a redescoberta da tetralogia hermiliana é através da releitura, da discussão, até do comentário negativo (mas vivo). Hermilo não precisa ser maior do que os demais, ele deve é estar em diálogo, ter sua obra cotejada, debatida por aqueles que pensam as relações entre escritores do passado e a literatura contemporânea. Dialogismo, polifonia, intertextualidade, alteridade, não-lugar… Pouco importam os topoi (dos mais longevos aos martelos mais cansados da pós-modernidade), desde que soprem a lenha ainda morna desse relançamento de Um cavalheiro da segunda decadência. Ainda que ela não chegue às prateleiras e catálogos, a fortuna crítica gerada pela edição da Bagaço cumprirá então seu papel de fornecer subsídios, provocar futuras leituras, preparar terreno para outras edições (impressas ou digitais). E aí sim não será exagero comemorar.

Um cavalheiro da segunda decadência
(Quatro volumes)
Hermilo Borba Filho
Bagaço
X págs.
Hermilo Borba Filho
Nasceu no Engenho Verde, município de Palmares, Zona da Mata Sul de Pernambuco. Formado pela Faculdade de Direito do Recife, nunca exerceu a profissão. Participou do grupo Gente Nossa e colaborou com Teatro de Amadores, antes de fundar o Teatro do Estudante de Pernambuco (1936), ao lado de Ariano Suassuna. Mais tarde, em 1960, após cinco anos morando em São Paulo, participou da criação do TPN (Teatro Popular do Nordeste). Hermilo escreveu mais de 20 peças, além de sete romances, três livros de contos, uma novela e um livro infantil. Foi também professor, pesquisador, ensaísta, biógrafo, tradutor, jornalista e poeta. Ou, como preferem sintetizar alguns, um agitador cultural.
Cristiano Ramos
Rascunho