Filha, acabas de nascer, mal eu te peguei no colo, e pronto, já chega, disse a enfermeira, e te recolheu de mim […] Assim nasce o Caderno de um ausente, segundo romance de João Anzanello Carrascoza. É a primeira linha de um caderno onde um professor, aos cinquenta anos, escreve suas reflexões à filha que acaba de nascer. Movido pelo temor de não estar presente enquanto a menina crescer, transforma as impressões da vida e a história da família em uma carta de educação sentimental. O resultado é prosa poética da mais delicada, e por isso, da mais contundente, onde […] subitamente, a linguagem frutifica, vazando primavera por todos os poros, porque é mais digno se molhar no sangue do presente do que no pó dourado do passado […]
Como de costume na obra de Carrascoza, desde a primeira linha há o presságio da perda: […] as únicas palavras que valem para sempre […] são aquelas, Bia, que anunciam o adeus. Ostensivamente, é de sua própria morte que fala o narrador, mas de fato é da onipresença da morte. Para ele, as palavras da memória são o único refúgio possível: memórias de visitas da tia, da história dos avós, do amor à terra que cultivavam, do cheiro da terra, memória até daquilo que o narrador nunca viu. Bia, […], já estou te perdendo, já te perdi por tudo o que vivestes até este instante, mas eu te recupero com as palavras, Bia, […] Esse Caderno, então, vem para resguardar a presença do pai na vida da filha, e da filha na memória do pai. Mas é muito mais do que um caderno.
As palavras vêm, riacho miúdo que vai ficando mais fundo do que largo. A correnteza, quase imperceptível da superfície, toma força de maré. Engana-se o leitor que pensa poder caminhar de uma margem a outra. Uma vez os pés dentro da água, é deixar-se levar. Pouco a pouco vai encontrar a família de João, o narrador, e Bia, sua filha; parentes vivos e falecidos, de quem conta o nome, parentesco, e um detalhe aqui, outro ali; um tio alcoólatra, outro, trovador; uma tia freira, outra, fugida. Como indivíduos, pouco representam, mas perfazem o mosaico cimentado por encontros familiares, nascimentos, fotos e migrações. Em suma, o ciclo da vida.
[…]não há como secar em nós o licor da história familiar […] Relações familiares são um dos temas importantes em toda a obra de Carrascoza. Diferentemente de muito da nossa literatura contemporânea, aqui o mote é a doação de uns aos outros. Assim como no Cristianismo, o ato de suprema doação é o da mãe que, para dar vida à filha, enfrenta cada dia com muito mais coragem do que saúde. Há também a avó Helena, muito presente e generosa, que faz das tripas, coração, para alegrar a neta enquanto cuida da filha. Mas a libra da carne o narrador cobra de si próprio, ao confessar seu passado de adultério, luxúria, mentira e soberba. Tão abjeto é seu pecado que nem mesmo a mulher toda perdão [conseguiu] retirar dele a cruz que lhe segue pregada aos ombros […] Pelas palavras roucas, sussurradas quase que a embalar a nenê, ouve-se um sentimento de proporções bíblicas. Coerente, Carrascoza diz, em entrevista no projeto Paiol Literário, em setembro de 2013: “Não trabalho com fatos, e sim com sentimentos”.
Ninharias
Nas águas desse lirismo também desembocam as ninharias do instante: sandálias, um relógio de bolso, bichos de pelúcia, […] e logo será o tempo dos lápis de cor, dos brinquedos eletrônicos, do garfo e faca […] A partir dessas ninharias, o autor organiza suas memórias, costura histórias cuja raiz é a realidade, inclusive a dele próprio, mas “o tronco é o das relações afetivas; de pessoas que se falam ou não […] que podem aprender a dizer não só com as palavras, mas com outras formas de dizer”. E uma forma de dizer, bem a caráter desse autor, é silenciar. Tudo nesse testamento é um ode ao silêncio; do título, Caderno de um ausente, que remete ao silêncio deixado por alguém que não está, aos espaços brancos que parecem surgir aleatoriamente em cada página; da voz silenciosa desse narrador que nunca usa exclamação, e com raras exceções, nem maiúsculas, ao maior silêncio do mundo, que é a morte.
Silencioso, mas nem por isso, menos eloquente. João quer deixar para Bia sua experiência, enquanto sabe que ela é o vivido intransferível. Igual a qualquer pai, quer proteger a filha de todo sofrimento; quer que ela se sinta protegida, e para isso busca a imagem mais forte de uma criança no Cristianismo, em linguagem que lembra as escrituras: […] eis o teu pai e a tua mãe, Bia, um de cada lado do teu berço, em torno do qual não há reis magos […] que não se assemelha a nenhuma manjedoura […] A simples alusão aos reis magos e à manjedoura estabelece precisamente o paralelo que o pai nega, e esse berço torna-se, sim, uma manjedoura. É uma imagem plena de significados. Se por um lado é impossível transferir experiência, por outro, compartilha-se a emoção, poetizando. Vida menos poesia igual vazio, diz o autor.
Poesia é o que se lê na prosa de Caderno de um ausente: acriançaremos novamente. Há um coro de vozes roseanas, mas também clariceanas, e de Mia Couto, a quem, tal como Carrascoza, a convivência entre numerosas mulheres desde a infância, parece ter nutrido o universo poético. A intimidade do “tu”, o tom de canção de ninar, os aforismos tão numerosos que desafiam o colecionador, tudo lembra um acolhimento materno, uma relação costurada muito antes de a criança nascer: […] a tua vida, filha, é um texto que há tempos começamos a escrever […] Essa ourivesaria vem a um custo. Segundo o próprio autor, ele escreve devagar, uma página por dia, […] as palavras grafadas com limpidez, igual água dentro do vidro, exibindo toda a transparência de sua escritura líquida e, ao mesmo tempo, escondendo resíduos de substâncias, milagrosas ou nocivas […]
A delicadeza do cristal permeia todo o romance na escolha das palavras, nos volteios das frases, na letra miúda. Ao leitor é oferecido um olhar entre frestas, mas sem qualquer tinta de malícia, seja em relatos das cólicas da nenê, seja para prenunciar, temerosamente, a morte que virá, onde, revelar a morte é comparado a uma sangria causada por uma faca, que é a verdade. João, já de posse dessa faca, gostaria de asfixiar as palavras que trarão a sangria. Mas o leitor também já possui a faca, e pressente a vizinhança da morte. Desde o começo, o autor avisa, […] eu te peço perdão, filha, por não ser o anfitrião ideal […] mas não há como esconder a morte ante a estreia de uma vida.
Ao final, nem todo o amor da família, nem a nuvem de memórias fazem frente ao grande ladrão da vida. A surpresa, apesar dos presságios, vem para todos, mostrando que por mais preparados que estejamos, nunca é o suficiente. Na vida, assim como no amor e na morte, há espaços que se abrem e sugam o que ali havia. Resta-nos preencher com o toque da pele, palavras preciosas e doação os espaços entre as ausências.