🔓 Violão e revolução

Somos um povo com um legado que não deve ser esquecido, e a revolução, no melhor estilo brasileiro de ser, certamente virá com caipirinha, samba e violão
Ilustração: Thiago Thomé Marques
03/06/2021

O Spotify me oferece uma playlist de violão brasileiro que, desde então, toca na caixinha em modo contínuo. Chegamos à era dos algoritmos íntimos. É preciso conhecer alguém muito profundamente para lhe indicar os sons que, vivos em sua memória, lhe acompanham desde seu nascimento.

Filho gosta do cheiro de tinta a óleo e terebentina, depois de passar boa parte de sua infância em ateliers.

Por falar em atelier, até o dia em que bebi água de nanquim por engano, eu tomava café em copo de requeijão, como a minha mãe. Se você estiver curioso, nanquim é tão saboroso quanto lamber pedra. Não pergunte.

Leio o jornal diário no celular, atravessada, com pressa. Leio o Rascunho na rede, com calma e café, como minha mãe fazia.

Filho e eu costumamos ler vários livros ao mesmo tempo, especialmente os teóricos, em mais um péssimo hábito herdado da avó dele.

Interrompo o que estou fazendo para ouvir — e só ouvir — uma música bonita. Assim como meu pai, também acho que uma boa canção não merece a atenção dividida.

Gosto dos cheiros de café, coentro, serragem de madeira, terebentina, alfazema, capim-limão, tangerina/bergamota/mexerica e insurreição popular.

Nós somos mais do que seres de linguagem. Nós somos seres de permanências. Barthes é meu pastor e nada me faltará.

Carrego comigo tanto a indignação quanto a poesia de meus pais.

Às vezes me perguntam o que minha mãe, que viveu quase 70 anos integralmente com sangue nos olhos contra fascismos, racismos, machismos e outros ismos, acharia do atual governo. Eu sempre respondo que, se fosse viva, ela provavelmente estaria presa a essa altura do campeonato.

No dia 29 de maio de 2021 não fui às manifestações. Não me senti no direito de expor as pessoas vulneráveis com quem convivo, que me são caras, ao risco de contágio por Covid.

O preço a pagar é, no meu contexto particular, alto demais. Escolhi enfrentar o genocida por outras vias. Entretanto, não me privei de escutar, de olhos fechados, os vídeos do #29M, em busca da trilha sonora da minha infância.

Mesmo desafinada, ainda hei de cantar a plenos pulmões que somos todos iguais, braços dados ou não.

Somos um povo com um legado que não deve ser esquecido e que não podemos permitir que os fascistas apaguem. Somos o país de Arnaldo Baptista, Chico Buarque, Geraldo Vandré, Gilberto Gil, Ney Matogrosso, Paulinho da Viola, Taiguara, Tom Zé. A revolução, no melhor estilo brasileiro de ser, certamente virá com caipirinha, samba e violão. E isso é lindo.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho