O Spotify me oferece uma playlist de violĂŁo brasileiro que, desde entĂŁo, toca na caixinha em modo contĂnuo. Chegamos Ă era dos algoritmos Ăntimos. É preciso conhecer alguĂ©m muito profundamente para lhe indicar os sons que, vivos em sua memĂłria, lhe acompanham desde seu nascimento.
Filho gosta do cheiro de tinta a óleo e terebentina, depois de passar boa parte de sua infância em ateliers.
Por falar em atelier, até o dia em que bebi água de nanquim por engano, eu tomava café em copo de requeijão, como a minha mãe. Se você estiver curioso, nanquim é tão saboroso quanto lamber pedra. Não pergunte.
Leio o jornal diário no celular, atravessada, com pressa. Leio o Rascunho na rede, com calma e café, como minha mãe fazia.
Filho e eu costumamos ler vários livros ao mesmo tempo, especialmente os teóricos, em mais um péssimo hábito herdado da avó dele.
Interrompo o que estou fazendo para ouvir — e só ouvir — uma música bonita. Assim como meu pai, também acho que uma boa canção não merece a atenção dividida.
Gosto dos cheiros de café, coentro, serragem de madeira, terebentina, alfazema, capim-limão, tangerina/bergamota/mexerica e insurreição popular.
Nós somos mais do que seres de linguagem. Nós somos seres de permanências. Barthes é meu pastor e nada me faltará.
Carrego comigo tanto a indignação quanto a poesia de meus pais.
Ă€s vezes me perguntam o que minha mĂŁe, que viveu quase 70 anos integralmente com sangue nos olhos contra fascismos, racismos, machismos e outros ismos, acharia do atual governo. Eu sempre respondo que, se fosse viva, ela provavelmente estaria presa a essa altura do campeonato.
No dia 29 de maio de 2021 não fui às manifestações. Não me senti no direito de expor as pessoas vulneráveis com quem convivo, que me são caras, ao risco de contágio por Covid.
O preço a pagar Ă©, no meu contexto particular, alto demais. Escolhi enfrentar o genocida por outras vias. Entretanto, nĂŁo me privei de escutar, de olhos fechados, os vĂdeos do #29M, em busca da trilha sonora da minha infância.
Mesmo desafinada, ainda hei de cantar a plenos pulmões que somos todos iguais, braços dados ou não.
Somos um povo com um legado que nĂŁo deve ser esquecido e que nĂŁo podemos permitir que os fascistas apaguem. Somos o paĂs de Arnaldo Baptista, Chico Buarque, Geraldo VandrĂ©, Gilberto Gil, Ney Matogrosso, Paulinho da Viola, Taiguara, Tom ZĂ©. A revolução, no melhor estilo brasileiro de ser, certamente virá com caipirinha, samba e violĂŁo. E isso Ă© lindo.