De vez em quando, professores da escola básica inventam projetos em que estudantes trocam cartas entre si ou com outros, de outras escolas, em alguns casos atĂ© enviando pelos Correios. É como se fosse uma visitinha Ă máquina do tempo, em especial para essa moçada que sĂł conhece aplicativo de celular. Minha prima mandou cartas aos sobrinhos que moram em outro estado. As crianças nĂŁo sabiam. Receberam os envelopes como surpresas, inclusive uns mais atrasados que outros, ainda que tenham sido postados juntos. Aprenderam que a emoção faz parte. Leram e talvez tenham gostado da ideia de responder Ă mesma maneira. Pode ser que tenham agradecido por meio de mensagens instantâneas muito mais resumidas. Aos dezoito ou dezenove anos, eu ainda trocava cartas com um amigo do ensino mĂ©dio. Embora tivĂ©ssemos telefone e outras formas de contato, sustentávamos uma espĂ©cie de conversa paralela, em outro ritmo e com outro tom, por meio de cartas cuidadosamente escritas e depois enviadas pelos Correios. Dava trabalho, era um cultivo, e mesmo quando nos encontrávamos pessoalmente, deixávamos o assunto tratado nas cartas apenas para elas. NĂŁo deixávamos o timing presencial interferir no espaçotempo do lado de lá. Ă€s vezes, escrevĂamos em papĂ©is de carta, aqueles especiais, bonitos; outras vezes, rasgávamos folhas de cadernos pautados, enviávamos colagens e recortes de jornais, fotos, convites, adesivos, carimbos. Toda uma sorte de recursos do mesmo timbre ia junto com nossos envelopes de bordas listradas.
Há alguns anos, fui pesquisar histĂłrias de escritoras por meio de cartas. A troca de correspondĂŞncias entre elas e outros era uma espĂ©cie de mundo preservado, salvaguardado por uma universidade, onde ainda Ă© possĂvel pensar e examinar com calma. Naquelas cartas manchadas, amareladas, escritas Ă tinta, rasuradas, Ă s vezes em finos papĂ©is timbrados, outras vezes precárias como as minhas, arrancadas de blocos ou dobradas com cuidado, era possĂvel encontrar ainda o dia a dia, as tristezas, as disputas, tambĂ©m as alegrias, os amores, o nascimento dos filhos, as fofocas, as brigas polĂticas, os combinados, as viagens, as crĂticas e os elogios entre todos, entre elas, relativos a pessoas que nĂŁo estavam na conversa. Eu, intrusa, enfiava minha cara curiosa na janela, como se aquelas cartas me dessem uma fresta quase proibida por onde eu lia e ouvia umas vozes, pegava uns assuntos no ar, fazia conexões e montava quebra-cabeças.
As cartas não me pareciam vivas, assim como suas autoras, também mortas, mas eram como um sopro em meus ouvidos, tanto tempo depois. Um privilégio eu tinha: podia cotejar as cartas e as biografias, remontando peças soltas que a história teimava em tentar recontar. Todos os dias, ao chegar ao arquivo, eu agradecia àquelas escritoras por terem enviado cartas umas às outras, por terem tornado suas conversas uma espécie de legado que me permitia viver meio assombrada por elas, mas também guardiã de seus assuntos, uma amiga fugidia, anacrônica, que chegou atrasada para um papo que só acontece na minha cabeça.
Ă€s vezes escrevo cartas travestidas de e-mails. Se ficarem atentas, as pessoas que as recebem perceberĂŁo que nĂŁo se trata de mensagens quaisquer. Há nelas uma cadĂŞncia atravessada pelos dias, pela vida, pelos afetos e pelas palavras que duram mais. TambĂ©m Ă s vezes escrevo cartas imaginárias. Elas ficam na minha cabeça, especialmente enquanto tomo banho ou em qualquer situação em que seja possĂvel estar sĂł e sem interrupções. NĂŁo sĂŁo cartas fragmentárias, nem blogs, nĂŁo tĂŞm post scriptum e nem querem ter. SĂŁo cartas que eu gostaria de escrever a algumas pessoas, mas jamais poderei ou terei oportunidade disso. SĂŁo cartas fictĂcias, cartas que nĂŁo podem existir, cartas que servem, talvez, apenas para desobstruir canais, deixar que ideias e pensamentos fluam, assim como sentimentos e soluções. Escrevo cartas mentalmente, Ă s vezes, se for no banho, falo baixo um texto que começa com um vocativo e segue com meus segredos, coisas que provavelmente jamais poderei dizer, mas gostaria. Algumas vezes choro ao “ler” essas coisas, porque elas desanuviam, expurgam, depois somem com o vapor no espelho. Uma carta ao meu pai, que jamais lerei no dia do seu enterro; uma carta Ă minha tia já falecida, carta pĂłstuma, atrasadĂssima; uma carta ao meu filho, que nĂŁo precisa conhecer a mĂŁe com tanto detalhe; uma carta a mim mesma, de envio impossĂvel, me dando dicas sobre o que nĂŁo fazer quando eu tinha vinte e poucos anos, uma carta tambĂ©m a mim no futuro, fazendo perguntas que talvez eu tenha tempo de encontrar respondidas numa gaveta entreaberta. Hoje eu quis escrever uma carta ao meu paĂs. NĂŁo sei se ele a leria, já que nĂŁo tenho me sentido cuidada nem como professora, nem como cidadĂŁ, nem como pessoa que quer se aposentar com dignidade, ou mais que isso. Quando dizem dignidade… desconfio muito do que virá. Por ora, vou pensar numa carta sem tinta, sem papel, que se evapore com a água do banho, mas consiga desobstruir sensações e esperanças.