Encontro um antigo caderno de anotações cheio de desenhos e escritos. Dentre eles, a anotação “uma chance de voltar a partir, Lacan”, sublinhada. A citação volta a me impactar. Não lembro se é a mesma emoção que me levou a anotá-la, mas o afeto (afeto é tudo aquilo que te afeta) continua.
Não vou falar da óbvia angústia do claustro causado pela quarentena. Isso é piada fácil, é bad writing.
Quero falar sobre o partir de si próprio e o partir do outro (que também é de si, na verdade).
Me abandonei mais vezes do que seria razoável e não me arrependo de nenhuma.
Esse Ă© um know-how que devo Ă minha mĂŁe. Ela me ensinou, ainda muito nova, que entrar nos lugares pode ser difĂcil, mas sair Ă© muito fácil. Serve para tudo: empregos, instituições, relacionamentos, residĂŞncias, paĂses.
Larguei uma faculdade de Biologia quase terminando. A fantasia infantil que eu nutria naquela época é de que me tornaria um Jacques Cousteau de saias. Sobrevivi, detestando tudo, até que chegasse a disciplina de Biologia Marinha. Quando percebi que preferia qualquer outra solução a trabalhar com aquilo, parti sem olhar para trás. Não parti da faculdade, parti de mim mesma com a morte da fantasia.
Depois, construĂ uma carreira em multimĂdia, design gráfico e web. Cansei. NĂŁo coloco nem no portfolio. Outra partida.
E, claro, parti em cada um dos muitos momentos de terapia que vivi. Fazer terapia Ă©, realmente, uma partida. Lacan tem razĂŁo.
A grande questĂŁo Ă© que nĂŁo Ă© possĂvel partir de um lugar sem partir de si prĂłprio. De nada adianta mudar de paĂs ou de emprego se vocĂŞ continua miseravelmente o mesmo.
É preciso se permitir permear pela vida.
De relacionamentos, ou seja, do outro, parti inĂşmeras vezes e, suspeito, mais algumas ainda estĂŁo por vir.
NĂŁo crio raĂzes. Parto com muita facilidade.
Um “não” me marcou mais que outros.
Ele carregava em uma pasta o original do seu romance que iria revolucionar o mundo, no braço uma tatuagem ridĂcula, no dedo um anel supostamente mĂstico e no peito uma dor enorme. Precisaria de um guindaste para carregar o ego. Falava muito. Lia pouco.
Comecei a dizer nĂŁo e fui embora.
NĂŁo.