🔓 Uma chance de voltar a partir

Guiada por uma reflexão de Lacan, a cronista comenta situações em que deixou lugares e pessoas para trás, pois é “preciso se permitir permear pela vida”
Ilustração: FP Rodrigues
21/10/2021

Encontro um antigo caderno de anotações cheio de desenhos e escritos. Dentre eles, a anotação “uma chance de voltar a partir, Lacan”, sublinhada. A citação volta a me impactar. Não lembro se é a mesma emoção que me levou a anotá-la, mas o afeto (afeto é tudo aquilo que te afeta) continua.

Não vou falar da óbvia angústia do claustro causado pela quarentena. Isso é piada fácil, é bad writing.

Quero falar sobre o partir de si próprio e o partir do outro (que também é de si, na verdade).

Me abandonei mais vezes do que seria razoável e não me arrependo de nenhuma.

Esse é um know-how que devo à minha mãe. Ela me ensinou, ainda muito nova, que entrar nos lugares pode ser difícil, mas sair é muito fácil. Serve para tudo: empregos, instituições, relacionamentos, residências, países.

Larguei uma faculdade de Biologia quase terminando. A fantasia infantil que eu nutria naquela época é de que me tornaria um Jacques Cousteau de saias. Sobrevivi, detestando tudo, até que chegasse a disciplina de Biologia Marinha. Quando percebi que preferia qualquer outra solução a trabalhar com aquilo, parti sem olhar para trás. Não parti da faculdade, parti de mim mesma com a morte da fantasia.

Depois, construí uma carreira em multimídia, design gráfico e web. Cansei. Não coloco nem no portfolio. Outra partida.

E, claro, parti em cada um dos muitos momentos de terapia que vivi. Fazer terapia Ă©, realmente, uma partida. Lacan tem razĂŁo.

A grande questĂŁo Ă© que nĂŁo Ă© possĂ­vel partir de um lugar sem partir de si prĂłprio. De nada adianta mudar de paĂ­s ou de emprego se vocĂŞ continua miseravelmente o mesmo.

É preciso se permitir permear pela vida.

De relacionamentos, ou seja, do outro, parti inĂşmeras vezes e, suspeito, mais algumas ainda estĂŁo por vir.

NĂŁo crio raĂ­zes. Parto com muita facilidade.

Um “não” me marcou mais que outros.

Ele carregava em uma pasta o original do seu romance que iria revolucionar o mundo, no braço uma tatuagem ridícula, no dedo um anel supostamente místico e no peito uma dor enorme. Precisaria de um guindaste para carregar o ego. Falava muito. Lia pouco.

Comecei a dizer nĂŁo e fui embora.

NĂŁo.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho