🔓 Um trauma de infância

Uma acusação gera momentos de tensão e certo divertimento durante a viagem diária do metrô
Ilustração: Juliano Soares
02/08/2022

Do Paraíso a Clínicas, o vozerio baixo se misturava ao ruído do atrito das rodas de ferro sobre os trilhos e ao rumor da abertura das portas, que produzem o frenesi de pernas em movimento antes do alerta imperativo para o fechamento guilhotinesco que separa abruptamente os que ficam dos que partem.

A mulher-feita entrou ofegante raspando nas borrachas. Tinha pressa e fixou olhos perturbados no banco vazio, onde se sentou com a arrancada da partida, espalhando bolsa, casaco e um livro da Virginia Woolf. Reuniu com destreza os pertences para dar espaço a uma senhora com cabelo branco e artrose nas mãos, que fundamentavam o direito ao assento preferencial. Tudo na conformação da normalidade para o horário quando, inesperadamente, uma fala elevada e arfante quebrou a pasmaceira:

— Você não vai me tocar, não!! Na saída, vou denunciá-lo à polícia… Só tem gente filha da puta nesse mundo! — O dedo em riste apontava para um sujeito sentado à frente, que empalideceu no primeiro momento para depois avermelhar o rosto com todo o sangue que o coração conseguia bombear naquele instante.

Os ocupantes do vagão lançavam olhares condenatórios de raiva contida que constrangiam o acusado.

— Eu sei que foi você!!… Só tem gente desgraçada nesse mundo! — A condição do acusado se tornara gravíssima nos segundos mais longos de sua existência. Os pensamentos particulares estavam todos em suspensão, e a atitude coletiva, que se tornara um ponto de interrogação perigoso, se concentrava no intuito grupal de aniquilar com os olhos o candidato ao cargo de malfeitor. Mas eis que, inadvertidamente, uma nova acusação veio carregada de redenção:

— A senhora não fique me olhando desse jeito que eu não tenho culpa!! — O sujeito à frente respirou aliviado, e uma sensação de estranhamento percorreu a audiência.

— É sempre assim!! Você só ouve o que eles dizem!! — Já se dirigindo a um jovem de mochila e uniforme escolar que, em pé, havia tirado o fone de ouvido para entender o que estava acontecendo.

A essa altura, já se podia sentir um relaxamento geral temperado por risos cuidadosamente disfarçados que brotavam nas poucas cabeças ainda indecisas se a situação ensejava algum motivo para divertimento.

No telefone celular, a agitada mulher agora simulava uma ligação desesperada, numa tentativa de convencer a mãe a acreditar no que dizia:

— Eu estou bem, mãe!!… Eu já tomei… Você não vai acreditar nunca mesmo em mim, não é, mãe!? — O vagão inteiro concentrado na conversa. — Eu já tomei, estou melhor, mãe! Já tomei!!… Só tem gente desgraçada neste mundo!… A porta do quarto não estava aberta, mãe, eu já disse e você não acredita!!… Eu já tomei, mãe!! Estou voltando. Você não acredita em mim, não é, mãe!?

O celular é apoiado na perna esquerda para, num misto de ira e ansiedade, voltar à acusação do sujeito à frente, que agora acompanhava o desenrolar da cena com olhos ligeiramente curiosos.

— Vou denunciá-lo!! Só tem gente filha da puta nesse mundo!

Com o telefone de volta ao ouvido, a mulher-feita ainda simulava, esbaforida, a conversa com a mãe quando inesperadamente se colocou de pé e, num xingamento convulsivo, se dirigiu à porta, equilibrando o celular na cabeça e os pertences quase caindo:

— Eu já disse que tomei, mãe! Você nunca vai acreditar em mim!! Estava fechada, mãe!! Só tem gente desgraçada neste mundo!

A voz automática anunciou a estação que chegava. Do lado de dentro, inquietas, pernas de todos os tipos, tamanhos e idades prenunciavam o saimento impaciente, e as de fora se organizavam para acertar a posição das portas, que se abrem e fecham por automatização — e para separar os que ficam dos que seguem.

Antonio Cestaro

É empresário do setor editorial e diretor do selo de literatura Tordesilhas. Estreou como escritor em 2012, com o livro de crônicas Uma porta para um quarto escuro. Em 2017, foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura com o romance Arco de virar réu.

Rascunho