🔓 Um sanduíche dormido e o Jabuti na mochila

Da corrida para pegar o ônibus ao encontro com um arrogante escritor, a alegria de se ganhar um dos principais prêmios literários
Ilustração: Kleverson Mariano
14/12/2022

O telefone começou a apitar por volta de onze da noite. Eu tinha acabado de sair do Theatro Municipal de São Paulo, chamado um Uber e aguardava a chegada do carro sob uma chuva fina e persistente. “Não dá mole com o celular, essa zona é perigosa”, alguém me alertou. Mas carioca tem pós-doutorado no tema e o aparelho estava guardado no bolso antes mesmo que o cauteloso conselheiro terminasse a frase.

Já no carro, comecei a checar as mensagens. Entre muitos parabéns e palavras gentis, uma pergunta ecoava: “E aí, onde vai comemorar?”.

Explico: a cerimônia no Municipal se referia à entrega do Jabuti e meu livro A lua na caixa d’água recebera o prêmio na categoria Crônica.

Li as mensagens enquanto o Uber me levava em direção à Rodoviária de São Paulo. Uma viagem de menos de quinze minutos. Ao chegar, recolhi novamente o celular.

O Terminal Tietê era um deserto urbano pontilhado pelo planeta fome. Com praticamente todas as lojas fechadas e quase nenhum passageiro, espelhava o Brasil do desgoverno Bolsonaro. Esvaziamento econômico, mendicância, desolação.

Nesse cenário, o letreiro aceso do Bob’s mais parecia uma miragem. Mas foi na tradicional rede de fast-food, onde não lanchava havia pelo menos vinte anos, que pude salvar o estômago. Um Cheddar Australiano duplo e uma Coca Zero para viagem, por favor.

Faltavam só quatro minutos para a partida do ônibus quando paguei ao caixa, desembestando com o Jabuti na mochila e a embalagem de comida nas mãos. Ao atravessar a porta do terminal, notei que o motorista já tinha ligado o motor.

PeraĂ­, piloto!

Ele esperou. Já sentado na poltrona, abri o pacote do Bob’s sob o olhar crítico da passageira ao lado. O cheiro enjoativo do cheddar tomou o ônibus.

Comi rapidamente e logo voltei ao celular, agora mais tranquilo. “E aí, onde tá comemorando?” A pergunta era a mesma, mas passara ao gerúndio.

Cerca de uma hora antes de embarcar, eu havia subido ao palco do faustoso teatro. Não vou fazer pose blasê. Para o menino nascido em Madureira, bairro suburbano do Rio, no seio de uma singela família de comerciantes, ser chamado ao tablado onde aconteceu a Semana de Arte Moderna, e em razão de um livro que escreveu, foi uma emoção e tanto.

Essa imagem voltaria à lembrança quando, já em Paraty, fui apresentado a Benjamín Labatut. Um conhecido em comum fez as honras e, tentando soar simpático, disse ao escritor convidado da Flip que eu havia ganhado o Jabuti. “Prêmios não importam nada”, mandou o chileno, antes mesmo de dizer oi. Enquanto bebia tranquilamente meu copo de cerveja, comentei que concordava em parte. Mas que estava feliz de ter recebido um prêmio que tantos autores que admiro já receberam. Algo que, nos tempos de garoto, não poderia jamais sonhar.

Labatut então perguntou o que eu, como ficcionista, considerava mais importante. Pensei por alguns segundos e, sem muita certeza, respondi: Tocar de alguma forma o leitor. “Discordo disso também”, ele retrucou. Saquei que a questão do moço era causar, o que já havia tentado em sua apresentação na tenda oficial. Para um escritor que defende menos livros no mundo, até que soou coerente. Labatut circulou por Paraty posando de enfant terrible, mas saiu de lá foi com o título de Mala Mor da Flip 2022.

Logo me despedi, desejei boa sorte e fui encher de novo o copo, que era o melhor a fazer.

Conto esse episódio porque a postura arrogante do meu colega é bem sintomática daqueles que julgam que a literatura configura um ofício superior aos demais. Um dom sagrado reservado a luminares, vedado aos demais.

Nos dias posteriores à entrega do prêmio e à viagem de retorno a Paraty, abracei os amigos, bebi incontáveis cervejas, festejei como se não houvesse amanhã. Os tais “dias de miss”. Mas ciente de que a maior parte da vida é seu caldo morno. Uma ida ao banco, a consulta no dentista, o sanduba frio devorado dentro do ônibus. E nem sempre há um Jabuti dentro na mochila.

Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’água (PrĂŞmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (PrĂŞmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

Rascunho