Embora pareça, as pequenas aventuras que vou contar nesta crĂ´nica nĂŁo sĂŁo causos, no sentido que nĂłs mineiros atribuĂmos a eles, isto Ă©, uma histĂłria que pode conter uma proporção de exagero, outra atĂ© de mentira, mas com finalidades benfazejas, nada muito prejudicial. O que conto aqui Ă© a pura verdade, nascida ali da observação; nĂŁo, mais: da vivĂŞncia de situações decorrentes da presença de um trofĂ©u na minha mala de mĂŁo pelos aeroportos do paĂs.
Experiente na treta
NĂŁo foi a primeira vez que passei por isso. Vinda de Passo Fundo, certa feita, tive de carregar um trofĂ©u grande, pesado, recebido pela participação num dos eventos mais importantes do paĂs quando o assunto Ă© leitura e leitores. NĂŁo foi exatamente tranquilo, me preocupou igualmente, mas nada aconteceu, daquela vez, embora a moça de metal deitada entre meus pertences pudesse ser entendida como um objeto perfurador e perigoso. Cheguei com ela bem faceira (eu e ela) em casa e está lá, sobre um mĂłvel, atĂ© hoje. Sem um histĂłrico de intercorrĂŞncias em viagem. TambĂ©m já tive de transportar um berimbau, queijos frescos e uma espada. Uma vez apenas, e cĂ´mica, fui pega com meu enorme alicate de mecânico na bolsa e nem assim desisti. Corri para fora do aeroporto, pedi ao rapaz do comĂ©rcio local que o guardasse atĂ© a minha volta, o que ele fez com zelo. VĂŞ se sou mulher de perder um alicate bom daqueles!
Já a estatueta do Jabuti… essa me causou, alĂ©m da imensa alegria de recebĂŞ-la, pequenos e sequenciais episĂłdios de preocupação em trânsito. Começando pelo aeroporto de Congonhas, em SĂŁo Paulo, onde tive de exercitar meus dons para o drama a fim de evitar que meu quelĂ´nio fosse lançado num porĂŁo de aviĂŁo.
Primeiro trecho
Desde que o paĂs e as companhias aĂ©reas decidiram cobrar atĂ© pelo ar que respiramos ao andar de aviĂŁo, grande parte das pessoas opta por nĂŁo despachar bagagem de mĂŁo. Embora esse seja um direito, as malas nĂŁo cabem no aviĂŁo lotado, entĂŁo despacham nossos pertences mesmo assim, a nosso contragosto. No meu caso, e imagino que em muitos outros, a mala de mĂŁo Ă© preparada com itens que justamente devem ir comigo. Muitas coisas frágeis, sensĂveis, de valor etc. que eu odiaria que fossem transportadas pelos tortuosos trajetos de dentro das esteiras de aeroportos. Lá Ă beira da entrada da aeronave, atendentes nem sempre simpáticas/os vĂŞm nos dizer que sim, senhora, vai ter de despachar sua maleta. E enfiam ali umas etiquetas, e nos marcam, denunciam e obrigam. Vez por outra alguĂ©m resiste, e nesse dia fui eu. Depois de a moça dizer, sem qualquer empatia, que minha mala seria despachada de qualquer jeito, eu sĂł pude deixar que ela metesse ali uma etiqueta. Dirigi-me ao Ă´nibus que nos levaria ao pĂ© do aviĂŁo. Lá, desci do Ă´nibus devagar, como aquelas crianças que nĂŁo querem entrar na escola para mais um dia entediante. Quando parei diante do moço que juntava as bagagens num canto, para logo lançá-las ao porĂŁo, aquela enorme boca aberta e escura, resolvi me pronunciar:
– Moço, por favor, a mala tem mesmo de ir aqui embaixo?
– Tem, senhora. Não há espaço dentro do avião. A senhora terá de deixar aqui comigo.
– Mas moço, é que aqui dentro há um objeto de extremo valor que eu não queria que ninguém tocasse, nem que fosse no porão. Preciso que vá comigo lá em cima.
(Aqui meu beicinho já tremia, meus olhos estavam marejados, minha cara era de desespero a piorar e eu mexia a cabeça negativamente o tempo todo, enquanto o rapaz me olhava atento).
– Senhora, sua mala não vai caber lá em cima.
– Mas moço, tem um objeto aà dentro que não pode sumir, se extraviar, nada disso.
Acho que ele se convenceu. Não foi brusco e nem mal-educado. Apenas arrancou a etiqueta com que a moça havia marcado minha mala lá atrás, e me liberou com bagagem e tudo. Agradeci, ainda com voz trêmula, e subi as escadinhas de trás da aeronave com uma alegria poucas vezes vista. Lá em cima, confirmei o que já sabia (porque as companhias aéreas também nos contam causos): havia espaço. Meu Jabuti viajou sobre a minha cabeça, sem intercorrências também, feliz e aconchegado entre meus casacos.
Segundo trecho
Mas eu sabia que a aventura nĂŁo pararia por aĂ. Era uma viagem a Natal e tudo ainda poderia acontecer. E aconteceu. Dois dias depois, na hora de retornar a Belo Horizonte, por outra companhia aĂ©rea, me engastalhei no raio-x do longĂnquo aeroporto da capital potiguar. NĂŁo cheguei a me surpreender, claro. Ao passar minha mala pela esteira, atravessei o portal do alarme e me postei ali do outro lado, querendo receber minha bagagem de mĂŁo. No entanto, vi quando a mala foi e voltou, deu rĂ©, voltou, deu nova rĂ©, enquanto a operadora da máquina chamava o colega e eles cochichavam sobre alguma coisa esquisita que viam ali. Enfim, o moço veio me informar:
– Senhora, teremos de inspecionar sua mala, tudo bem?
Bom, o “tudo bem” é retórico, como sabemos. Só resta deixar. Minha mala ali, indefesa, diante de mim, foi aberta impudicamente, dando a ver meus pertences, incluindo calcinhas usadas e sem uso, pasta de dente, pente, roupa limpa e roupa suja, embora tudo razoavelmente organizado. O moço, de luvas, mexia aqui, remexia ali, à procura de algo, claro. E suas mãos toparam mesmo com um saco de veludo preto que guardava um objeto estranho, frio e pesado. Ele levantou o saco e me olhou:
– Senhora, posso ver o que é isto?
– Pode sim, pode abrir.
– Licença, senhora.
Ele enfiou lá dentro as mãozonas enluvadas e retirou meu Jabuti, mirando-o e virando-o em todos os ângulos, claramente ainda sem entender o que era. Talvez tenha notado ser uma estátua de animal, talvez tenha achado que eu era uma bióloga marinha, pescadora, agraciada pelo Ibama ou pelo Projeto Tamar, vai saber. Mas deixou que eu respondesse:
– O que é, senhora?
– É um troféu.
– Troféu, senhora? De quê?
– É por um prêmio de literatura. Ganhei esses dias. Não sei direito como transportar.
– Ah, senhora, um troféu de literatura?! A gente conversa aqui com pessoas importantes e nem sabe, né? Parabéns, senhora.
A partir daĂ, o moço passou a me tratar com certa deferĂŞncia, me perguntou como eu gostaria que a estatueta viajasse, se preferia de cabeça para cima ou para baixo, se nĂŁo era melhor em meio Ă s roupas, para que nĂŁo batesse dentro da mala, para que nĂŁo estragasse, soltasse o bicho da placa que o firmava etc. Foi um delicado engenheiro desse transporte curioso, ajudou no fechamento cuidadoso da mala, me deu parabĂ©ns mais duas ou trĂŞs vezes, pĂ´s minha bagagem no chĂŁo com cuidado, como se quisesse evitar um impacto prejudicial ao quelĂ´nio, e se despediu de mim.
O alĂvio
Eu acho que eu sorria o tempo todo. NĂŁo sei. Estive tĂŁo atenta Ă situação que nĂŁo tive tempo de notar meu prĂłprio rosto sob a máscara. Ao dar uns passos em direção aos portões, sei que ri. Mas aĂ ri de nervosa e do sem-noção da situação, da questĂŁo que se coloca: como transportar um Jabuti pelos aeroportos, paĂs afora? SĂŁo objetos perigosos, afinal? Posso ameaçar a tripulação e os passageiros com um destes? O que pode uma autora de livros literários contra as regras da aviação e da Anac? Mas, de outro lado, como permitir que um objeto de tanto valor, ao menos para quem o recebe, viaje de qualquer jeito na escuridĂŁo apertada e vulnerável de um porĂŁo de aeronave. Já imaginaram meu Jabuti chegando a Confins? Eu ali, parada, Ă espera da minha mala, que chega lançada de cá para lá e desce num tombo atĂ© a esteira onde posso pegá-la? Como viver com isso?
O Jabuti chegou em casa sĂŁo e salvo. Tirei-o de entre as calças e blusas e fui me envolver com o outro problema (bom problema): onde ele viverá agora? Meu filho e alguns amigos diziam que ele tinha de se postar bem atrás de mim, numa estante, onde fosse captado pela webcam e as pessoas o vissem em todas as minhas transmissões por vĂdeo. Vejam que povo exibido! NĂŁo, de forma alguma. O Jabuti foi, finalmente, colocado no melhor lugar em que poderia estar: na minha prateleira de bibelĂ´s de leitores. EstĂŁo lá meninos e meninas, moços e velhos lendo, bichos leitores, em pĂ©, deitados, sentados, de ferro, de cerâmica, de biscuit, assinados por artistas ou nĂŁo, peças de várias partes do mundo. E meu Jabuti lá, bem Ă vontade. Ufa!