🔓 Um Jabuti na mala

A odisseia de um pequeno (e valioso) troféu pelos confins de aeroportos, aviões e viagens
Ilustração: FP Rodrigues
13/12/2022

Embora pareça, as pequenas aventuras que vou contar nesta crônica não são causos, no sentido que nós mineiros atribuímos a eles, isto é, uma história que pode conter uma proporção de exagero, outra até de mentira, mas com finalidades benfazejas, nada muito prejudicial. O que conto aqui é a pura verdade, nascida ali da observação; não, mais: da vivência de situações decorrentes da presença de um troféu na minha mala de mão pelos aeroportos do país.

Experiente na treta
Não foi a primeira vez que passei por isso. Vinda de Passo Fundo, certa feita, tive de carregar um troféu grande, pesado, recebido pela participação num dos eventos mais importantes do país quando o assunto é leitura e leitores. Não foi exatamente tranquilo, me preocupou igualmente, mas nada aconteceu, daquela vez, embora a moça de metal deitada entre meus pertences pudesse ser entendida como um objeto perfurador e perigoso. Cheguei com ela bem faceira (eu e ela) em casa e está lá, sobre um móvel, até hoje. Sem um histórico de intercorrências em viagem. Também já tive de transportar um berimbau, queijos frescos e uma espada. Uma vez apenas, e cômica, fui pega com meu enorme alicate de mecânico na bolsa e nem assim desisti. Corri para fora do aeroporto, pedi ao rapaz do comércio local que o guardasse até a minha volta, o que ele fez com zelo. Vê se sou mulher de perder um alicate bom daqueles!

Já a estatueta do Jabuti… essa me causou, além da imensa alegria de recebê-la, pequenos e sequenciais episódios de preocupação em trânsito. Começando pelo aeroporto de Congonhas, em São Paulo, onde tive de exercitar meus dons para o drama a fim de evitar que meu quelônio fosse lançado num porão de avião.

Primeiro trecho
Desde que o país e as companhias aéreas decidiram cobrar até pelo ar que respiramos ao andar de avião, grande parte das pessoas opta por não despachar bagagem de mão. Embora esse seja um direito, as malas não cabem no avião lotado, então despacham nossos pertences mesmo assim, a nosso contragosto. No meu caso, e imagino que em muitos outros, a mala de mão é preparada com itens que justamente devem ir comigo. Muitas coisas frágeis, sensíveis, de valor etc. que eu odiaria que fossem transportadas pelos tortuosos trajetos de dentro das esteiras de aeroportos. Lá à beira da entrada da aeronave, atendentes nem sempre simpáticas/os vêm nos dizer que sim, senhora, vai ter de despachar sua maleta. E enfiam ali umas etiquetas, e nos marcam, denunciam e obrigam. Vez por outra alguém resiste, e nesse dia fui eu. Depois de a moça dizer, sem qualquer empatia, que minha mala seria despachada de qualquer jeito, eu só pude deixar que ela metesse ali uma etiqueta. Dirigi-me ao ônibus que nos levaria ao pé do avião. Lá, desci do ônibus devagar, como aquelas crianças que não querem entrar na escola para mais um dia entediante. Quando parei diante do moço que juntava as bagagens num canto, para logo lançá-las ao porão, aquela enorme boca aberta e escura, resolvi me pronunciar:

– Moço, por favor, a mala tem mesmo de ir aqui embaixo?

– Tem, senhora. Não há espaço dentro do avião. A senhora terá de deixar aqui comigo.

– Mas moço, é que aqui dentro há um objeto de extremo valor que eu não queria que ninguém tocasse, nem que fosse no porão. Preciso que vá comigo lá em cima.

(Aqui meu beicinho já tremia, meus olhos estavam marejados, minha cara era de desespero a piorar e eu mexia a cabeça negativamente o tempo todo, enquanto o rapaz me olhava atento).

– Senhora, sua mala não vai caber lá em cima.

– Mas moço, tem um objeto aí dentro que não pode sumir, se extraviar, nada disso.

Acho que ele se convenceu. Não foi brusco e nem mal-educado. Apenas arrancou a etiqueta com que a moça havia marcado minha mala lá atrás, e me liberou com bagagem e tudo. Agradeci, ainda com voz trêmula, e subi as escadinhas de trás da aeronave com uma alegria poucas vezes vista. Lá em cima, confirmei o que já sabia (porque as companhias aéreas também nos contam causos): havia espaço. Meu Jabuti viajou sobre a minha cabeça, sem intercorrências também, feliz e aconchegado entre meus casacos.

Segundo trecho
Mas eu sabia que a aventura não pararia por aí. Era uma viagem a Natal e tudo ainda poderia acontecer. E aconteceu. Dois dias depois, na hora de retornar a Belo Horizonte, por outra companhia aérea, me engastalhei no raio-x do longínquo aeroporto da capital potiguar. Não cheguei a me surpreender, claro. Ao passar minha mala pela esteira, atravessei o portal do alarme e me postei ali do outro lado, querendo receber minha bagagem de mão. No entanto, vi quando a mala foi e voltou, deu ré, voltou, deu nova ré, enquanto a operadora da máquina chamava o colega e eles cochichavam sobre alguma coisa esquisita que viam ali. Enfim, o moço veio me informar:

– Senhora, teremos de inspecionar sua mala, tudo bem?

Bom, o “tudo bem” é retórico, como sabemos. Só resta deixar. Minha mala ali, indefesa, diante de mim, foi aberta impudicamente, dando a ver meus pertences, incluindo calcinhas usadas e sem uso, pasta de dente, pente, roupa limpa e roupa suja, embora tudo razoavelmente organizado. O moço, de luvas, mexia aqui, remexia ali, à procura de algo, claro. E suas mãos toparam mesmo com um saco de veludo preto que guardava um objeto estranho, frio e pesado. Ele levantou o saco e me olhou:

– Senhora, posso ver o que é isto?

– Pode sim, pode abrir.

– Licença, senhora.

Ele enfiou lá dentro as mãozonas enluvadas e retirou meu Jabuti, mirando-o e virando-o em todos os ângulos, claramente ainda sem entender o que era. Talvez tenha notado ser uma estátua de animal, talvez tenha achado que eu era uma bióloga marinha, pescadora, agraciada pelo Ibama ou pelo Projeto Tamar, vai saber. Mas deixou que eu respondesse:

– O que é, senhora?

– É um troféu.

– Troféu, senhora? De quê?

– É por um prêmio de literatura. Ganhei esses dias. Não sei direito como transportar.

– Ah, senhora, um troféu de literatura?! A gente conversa aqui com pessoas importantes e nem sabe, né? Parabéns, senhora.

A partir daí, o moço passou a me tratar com certa deferência, me perguntou como eu gostaria que a estatueta viajasse, se preferia de cabeça para cima ou para baixo, se não era melhor em meio às roupas, para que não batesse dentro da mala, para que não estragasse, soltasse o bicho da placa que o firmava etc. Foi um delicado engenheiro desse transporte curioso, ajudou no fechamento cuidadoso da mala, me deu parabéns mais duas ou três vezes, pôs minha bagagem no chão com cuidado, como se quisesse evitar um impacto prejudicial ao quelônio, e se despediu de mim.

O alívio
Eu acho que eu sorria o tempo todo. Não sei. Estive tão atenta à situação que não tive tempo de notar meu próprio rosto sob a máscara. Ao dar uns passos em direção aos portões, sei que ri. Mas aí ri de nervosa e do sem-noção da situação, da questão que se coloca: como transportar um Jabuti pelos aeroportos, país afora? São objetos perigosos, afinal? Posso ameaçar a tripulação e os passageiros com um destes? O que pode uma autora de livros literários contra as regras da aviação e da Anac? Mas, de outro lado, como permitir que um objeto de tanto valor, ao menos para quem o recebe, viaje de qualquer jeito na escuridão apertada e vulnerável de um porão de aeronave. Já imaginaram meu Jabuti chegando a Confins? Eu ali, parada, à espera da minha mala, que chega lançada de cá para lá e desce num tombo até a esteira onde posso pegá-la? Como viver com isso?

O Jabuti chegou em casa são e salvo. Tirei-o de entre as calças e blusas e fui me envolver com o outro problema (bom problema): onde ele viverá agora? Meu filho e alguns amigos diziam que ele tinha de se postar bem atrás de mim, numa estante, onde fosse captado pela webcam e as pessoas o vissem em todas as minhas transmissões por vídeo. Vejam que povo exibido! Não, de forma alguma. O Jabuti foi, finalmente, colocado no melhor lugar em que poderia estar: na minha prateleira de bibelôs de leitores. Estão lá meninos e meninas, moços e velhos lendo, bichos leitores, em pé, deitados, sentados, de ferro, de cerâmica, de biscuit, assinados por artistas ou não, peças de várias partes do mundo. E meu Jabuti lá, bem à vontade. Ufa!

Ana Elisa Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É autora de livros de poesia, conto e crônica, infantis e juvenis, tendo estreado com um volume de poemas em 1997. Teve colunas fixas em algumas revistas desde 2003 e publicou quatro livros de crônicas reunidas: Chicletes, Lambidinha & outras crônicas (Escribas, 2012), Meus segredos com Capitu (Escribas, 2013, semifinalista Portugal Telecom), Doida pra escrever (Moinhos, 2021) e Nossa língua & outras encrencas (Parábola, 2023). É professora da rede federal de ensino e pesquisadora das mulheres na edição.

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