🔓 Um assalto sem roubo

Este objeto arcaico, o livro, pode ser deixado ao relento, ao olhar mais astuto do ladrão, que infelizmente passará incólume
Ilustração: Amanda Cestaro
06/12/2022

O preço de um livro físico pode ser bem dimensionado, definido de acordo com o tamanho, o papel empregado, o nível de acabamento, etc. Já o valor do conteúdo – em muitos casos, se considerarmos a perenidade, a contribuição na formação do intelecto de gerações por centenas ou milhares de anos – é imensurável, uma fortuna realmente inestimável.

Nos dias de hoje, com as facilidades tecnológicas, grande parte desses tesouros literários pode ser acessada e “consumida” virtualmente quase sem custo ou a um custo muito baixo. Trata-se de mais um daqueles paradoxos que nos fazem pensar, afinal, quanto realmente vale um diamante cuja serventia, quando não está a serviço da indústria, é o ornamento e a ostentação de quem o possui. Aliás, “possuir” é uma condição igualmente paradoxal quando um idiota pode possuir uma quantidade considerável de livros sem que os valorize minimamente com a leitura, com o conhecimento. “Valorizar”, é isso! Reconhecer o valor, ampliar o valor de algo agregando elementos transformadores: o princípio básico da geração de riqueza. Como disse Tales de Mileto: “O homem rico nem sempre é sábio, mas o homem sábio é sempre rico”.

Esse raciocínio econômico e a sua relação com o livro surgiu a partir de um acontecimento curioso. A função do Raphael era entregar os pedidos feitos à editora para as livrarias. As caixas eram identificadas e numeradas para facilitar o manuseio.

“Parei o carro a poucos metros da livraria, apanhei os dois volumes, fechei o furgão com as chaves como sempre fazia e me dirigi ao endereço de entrega. Ao retornar, poucos minutos depois, percebi de longe, com estranheza, que a porta traseira do carro estava aberta e cheguei a pensar que talvez a tivesse deixado assim por distração. Ao me aproximar, percebi que as caixas no interior do veículo não estavam dispostas como as deixara, algumas estavam abertas. A maçaneta da porta estava torcida, forçada provavelmente por uma barra de metal ou madeira. Conferi as caixas e, de acordo com as notas fiscais, percebi que os livros estavam todos ali. Selei novamente cada uma delas e prossegui com as entregas. Já na maçaneta da porta, o estrago foi grande, vamos precisar trocá-la.”

Um assalto sem roubo! Fiquei num misto de alívio e desapontamento. Um desejo, ao fundo, de que toda a carga tivesse sido roubada e chegado, de alguma maneira, às mãos de improváveis leitores. O diabo é que certas preciosidades precisam ser reconhecidas como tal. Soube de um caso intrigante: o cara pintava barras de ouro com tinta preta e as usava como peso de papel e suporte para segurar portas. Os livros não precisam ser camuflados. Se você esquecer um livro no transporte público, num banco de praça ou em qualquer outro espaço público, relaxe e volte para buscá-lo sem pressa. Já fiz o teste: Crime e castigo demorou seis horas e quarenta minutos para ser apanhado – não vamos classificar isso como furto porque sabemos que abandonar livros em praças é uma prática relativamente comum, reconhecida tanto por quem deixa os livros, como por quem os aproveita. Vidas secas foi um pouco mais rápido: três horas e quinze minutos. Madame Bovary demorou cinco horas e meia. Se não tivesse mudado de apartamento e perdido a vista do banco da praça, ao longe, teria composto uma lista mais ampla, com tipos variados de obras e autores – que não interessaria de nada além de saciar uma simples curiosidade.

Antonio Cestaro

É empresário do setor editorial e diretor do selo de literatura Tordesilhas. Estreou como escritor em 2012, com o livro de crônicas Uma porta para um quarto escuro. Em 2017, foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura com o romance Arco de virar réu.

Rascunho