🔓 Tudo aquilo que um dia me ensinou

Uma senhora a brincar no mar e um buraco no meio do caminho podem nos ensinar como seguir adiante
Ilustração: FP Rodrigues
09/01/2023

A praia era uma pontinha de mundo, quase ao pé de uma das montanhas mais famosas de todos os tempos. Não era o mar mais azul, ou a areia mais branca, acho que nem tinha aquelas palmeiras verdinhas folhudas que qualquer criança incluiria em um desenho de praia. Era uma praia no meio da cidade, miúda, sem onda, mas era uma praia. E era ali que eu estava no primeiro dia desse ano que parece ser o primeiro ano das nossas vidas, não parece?

Eu estava sentada na areia, esfarelando uns pedaços de concha com uma mão, quando escutei esses gritos bem perto de mim, eram gritos agudos, mas também gargalhadas, que saíam da mesma boca e se espalhavam pelo mar sem ondas que, a essa altura, eu olhava com indiferença. Eu já tinha visto o mar antes. Eu já tinha visto o mar muitas vezes. Eu já tinha visto muitos mares, e não me lembro de alguma vez gargalhar-gritar com todo o meu corpo, como aquela mulher ali, bem debaixo dos meus olhos.

Era uma senhora, cabelos totalmente brancos presos num rabo baixo, uns grampos ajudando a deixar tudo no lugar. Umas rugas. Um maiô preto reto sem nada sem nenhum bordado nenhum recorte só preto e nada mais. Eu não sei, porque não perguntei, mas apostaria que aquela mulher tinha algo como setenta, setenta e cinco anos e que o menino de mãos dadas com ela era um de muitos netos. Ele sorria, ela gargalhava e gritava a água gelada na altura da cintura, com uma mão dava tapinhas e olhava a água espirrando e a outra segurava firme as mãos do menino. Ela olhava o céu de olhos fechados. Era o primeiro mar dela, ninguém me disse, mas eu tenho certeza.

E como olhar alguma coisa pela primeira vez é emocionante e louco. Que vontade eu tive de poder olhar o mar pela primeira vez, de ler o meu livro favorito pela primeira vez, de ouvir o coração do meu filho bater pela primeira vez.

Saindo da praia eu pisei num buraco, um desses atrevidos no meio da rua, que só aparecem na hora exata que a gente pisa, eu posso jurar que ele não estava lá minutos antes. Caí estatelada, o pé virou esfolou inchou muito rapidamente e, aí, minha única possibilidade foi desacelerar.

Eu não tinha que estar em lugar nenhum naquele dia, mas, até o buraco me acontecer, eu andava rápido, pisava forte, como se estivesse atrasada para qualquer coisa. Com o pé doendo não se pode ter pressa. Com o pé doendo se olha pro chão. Com o pé doendo eu consigo caminhar de mãos dadas com o meu filho sem que ele precise exigir demais das pequenas pernas. O pé doendo dá tempo pra olhar o céu, olhar a montanha, olhar a bandeira do Brasil vibrando com o vento naquele dia que foi o dia mais importante em muito tempo.

Eu ainda não tinha feito as minhas resoluções de ano novo, aquelas anotações que ficam no começo da agenda, que podem ou não ser esquecidas no mês três ou no mês quatro. Eu não tinha feito as minhas resoluções e, no mesmo dia, elas apareceram para mim: olhar como se fosse a primeira vez, pisar devagar.

Que em dois mil e vinte e três a gente se permita.

Marcela Dantés

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1986. Lançou em 2016 a coletânea de contos Sobre pessoas normais (Patuá). Seu primeiro romance, Nem sinal de asas (Patuá), foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2021 na categoria Melhor Romance de Estreia e do Prêmio Jabuti 2021, na categoria melhor Romance Literário. Em 2022, lançou João Maria Matilde, pela Autêntica Contemporânea.

Rascunho