🔓 Traduzir, de Carlito Azevedo

Além de ser um poema que aciona a herança da poesia visual, “Traduzir” impulsiona a lua como objeto, imagem, metáfora
Carlito Azevedo, autor do poema “Traduzir”
01/01/2023

( d u a      s ( l i      n g ( u     a g e (

n s d )      i f ) e      r ) e n     ) t e s

( u m a    s ( o n    a n ( t     e & a (

O U T )    r a ) a     u ) s e     ) n t e

( l u a      m ( I N    g u ( a    n t e (

l u a )      c r ) e      s ) c e     ) n t e

Já nas páginas primeiras de seu primeiro livro, Collapsus linguae, de 1991, e já premiado com o Jabuti, Carlito Azevedo dá a ver Traduzir, poema que transita entre o verbal e o visual. Se traduzido em versos comuns, o poema assim ficaria: duas linguagens/ diferentes/ uma sonante/ e a outra ausente/ lua minguante/ lua crescente — expressivo, mas bem longe dos efeitos que o poema verdadeiro e original provoca. O sinal de parêntesis em movimento, a exata distribuição das letras, as palavras em maiúsculo e a paratática homologia entre os versos e seus componentes dão ao poema um tom inaugural.

Seguindo as fases da lua, sigamos o poema:

(((( pelos seis versos, os parêntesis se deslocam de modo similar e harmonioso, sugerindo o próprio caminhar da lua. Os sinais “)” e “(“, de fecho e abertura, correspondem, iconicamente, às fases intermediárias da lua (minguante e crescente), e não às plenas (cheia e nova);

)))) cada verso se regula por quatro blocos de quatro elementos: três letras e um parêntesis. Este passa pelas letras, cortando-as, como a lua pelas nuvens (ou vice-versa), produzindo inesperadas combinações, o que reforça o efeito de estranhamento: age, r)en )tes, s(on, e&a(, u)se, m(IN, (lua / lua), cr)e;

(((( além desses efeitos, o poema elabora novas dobras ao ressaltar os polos opostos OUT e IN, vindos de dentro dos termos outra e minguante e carregando, bilíngues, os sentidos de fora e dentro, qual o movimento em vaivém da lua-parêntesis no texto;

)))) se o sentido de “traduzir” é “transpor de uma língua para outra” e por extensão “explicar, submeter a uma interpretação”, o poema Traduzir trata de duas linguagens, a verbal e a visual, fazendo dialogar fixidez e movimento, o dentro e o fora (OUT/IN), o maiúsculo e o minúsculo, o minguante e o crescente e, sobretudo, uma linguagem que produz som e outra que não: (uma s(on an(t e&a( // OUT) ra)a u)se )nte. Som e silêncio. Poema e lua.

Com esse poema, Carlito passa — desde a estreia — a pertencer à imensurável legião de poetas que se renderam ao fascínio da lua. Italo Calvino, ao falar de Leopardi em Seis propostas para o próximo milênio, diz que, “Desde que surgiu nos versos dos poetas, a lua teve sempre o poder de comunicar uma sensação de leveza, de suspensão, de silencioso e calmo encantamento”. Poucos signos, feito a lua, na história das artes e da poesia, atravessam e permanecem, incólumes e por séculos, como fetiche no desejo dos sujeitos, o que leva, inevitavelmente, à produção de incessantes clichês e de poemas de lesa-lua. Noutras palavras, é sempre um desafio para os poetas lidar com signos, imagens, metáforas tão usados, surrados, desgastados.

A lua, sua magia e seus segredos noturnos se tornaram das mais constantes fontes de inspiração para os românticos (para não irmos muito longe). A seguir, os modernos (de ponta) a desinvestiram de seu caráter etéreo, misterioso e aurático, tratando-a ora como objeto de pesquisa científica, ora já localizada num espaço para onde confluiria a cultura poética sobre ela, num processo constante de desmetaforização e remetaforização (tal aspecto Hugo Friedrich desenvolve em seu clássico Estrutura da lírica moderna, de 1956; no Brasil, em 1978).

Poucos, pouquíssimos escritores (não só poetas) resistiram à tentação de tomar posse da lua (feito o Calígula na peça de Camus), dar a ela uma forma. Não à toa, o antológico Poema de sete faces (1930, Alguma poesia) termina de modo apoteótico: “Eu não devia te dizer/ mas essa lua/ mas esse conhaque/ botam a gente comovido como o diabo”. Antes de Drummond, Álvares descrevia a amada dormindo, “Como a lua por noite embalsamada”; Alphonsus, por sua vez, revelou para onde olhava sua trágica personagem: “Quando Ismália enlouqueceu,/ Pôs-se na torre a sonhar…/ Viu uma lua no céu,/ Viu outra lua no mar”. Já de 1947 é Serenata sintética, de Cassiano Ricardo: “Rua/ torta.// Lua/ morta.// Tua/ porta” — sobre o qual há brilhante análise de José Américo Miranda em Entre o instante e o tempo: um poema de Cassiano Ricardo (1994). Manuel Bandeira surpreende e, em 1960, publica Satélite. Antes, em 1942, Cecília Meireles fez Lua adversa, e Vinicius fez Canção de ninar meu bem, em 1962. No campo da canção, como não lembrar Lunik 9 de Gil (1967), e Lua lua lua lua de Caetano (1975)? O poeta Bith, em Digitais (1990), registrou em modo haicai: “mais uma vez: lua/ tão redonda e tanto tempo/ nem minha nem sua”. No Rascunho n. 208, de agosto de 2017, analisei o belo e triste poema de Leminski: “lua à vista/ brilhavas assim/ sobre auschwitz?”. Os exemplos tendem ao infinito.

Ou seja, é sempre um risco (o risco do bordado, diria Autran) o poeta lançar-se ao uso de metáforas tão recorrentes. Esse risco Carlito não evita, enfrenta-o, e para fugir à mesmice e ao estereótipo tem como inspiração o que diz em Da inspiração, poema que vem, em Collapsus linguae, logo após a Traduzir: “Desconfiar do estalo/ antes de utilizá-lo// mas sendo impossível/ de todo aboli-lo// desconfiar do estalo/ dar ao estalo estilo”. Não é o que pensa, contudo, o poeta e crítico Luis Dolhnikoff, em seu rigoroso artigo Relendo Carlito Azevedo ou Um caso exemplar da poesia brasileira contemporânea (2009), que, a despeito de pontuar que Carlito “tem talento com as palavras”, discorda frontalmente do que diz José Lino Grünewald na orelha do livro: “Um dos pontos mais altos — concretos — da poesia recente: o poema Traduzir. Talvez seja o momento de maior invenção do livro”. Para Dolhnikoff, o poema não passa de “uma imitação despudorada de Augusto de Campos”, e procura apontar semelhanças — penso que frágeis — entre o poema visado (de Carlito) e o imitado (de Augusto).

De certo modo, Dolhnikoff antecipa reflexões que viriam no também duro artigo intitulado Negativo e ornamental: um poema de Carlito Azevedo em seus problemas (2011), de Iumna Maria Simon e Vinicius Dantas. Neste, faz-se uma crítica radical a um poema do escritor carioca, Na noite física, lido como paradigmático de um tipo de fazer poesia no Brasil que, em suma, primaria por efeitos esteticistas em detrimento de uma opção pelo real histórico. Contra os argumentos do artigo de Simon e Dantas, Susana Scramim escreve A crítica brasileira de poesia contemporânea: velhos debates, outras máscaras (2012), e sai em veemente defesa do poema e do poeta Carlito, sobre o qual escreveu o volume da importante coleção Ciranda da Poesia (Eduerj, 2010).

Fato é que a obra de Carlito tem atraído a atenção de grande parte de nossa crítica: além de Susana Scramim, críticos do porte de Antonio Carlos Secchin, Célia Pedrosa, Flora Süssekind, Heloisa Buarque de Hollanda, Italo Moriconi, Luiz Costa Lima, Silviano Santiago, Valdir Prigol e Viviana Bosi têm dedicado textos e elogios à obra do poeta e tradutor formado em Letras pela UFRJ, editor da badalada revista Inimigo Rumor e da coleção Ás de colete. Outra prova de reconhecimento veio dos próprios poetas: os 54 poetas convidados pelo Suplemento Literário de Minas Gerais, numa edição especial de maio/2013, a indicarem “um único poema produzido por autor nascido a partir de 1960”, escolheram 52 poemas de 40 autores, e Carlito foi o poeta com mais poemas (cinco) indicados pelos pares.

A abundância de citações e de diálogos intertextuais é, sem dúvida, um traço da poesia contemporânea, e a poesia de Carlito não escapa a esses procedimentos. Na última página do livro Monodrama, de 2009, finalista do Portugal Telecom (atual Oceanos), há uma lista de “agradecimentos e ‘coro’” com 25 nomes, entre os quais lemos: Philippe Ariès, Pina Bausch, Samuel Beckett, Henri Bergson, Philip K. Dick, Hans Magnus Enzensberger, Claude Lanzmann, Bia Lessa, Jorge de Lima, Tzvetan Todorov, Mark Twain, Tristan Tzara — pequena mostra do imenso paideuma do qual o poeta se apropria em sua obra.

Se Traduzir é um poema que aciona a herança da poesia visual, é também um poema que aciona um tema (objeto, imagem, metáfora), a lua, tão ancestral quanto contemporâneo, e assim, sem citar explicitamente um outro poema ou poeta, cita de uma só vez todos aqueles que, nalgum momento, de alguma forma, lidaram com o signo “lua”. Nesse sentido, lembremos outro poema de Leminski, de La vie en close: “celeumas luas/ onde se lê uma/ leiam-se duas”. No poema do curitibano, o engenho de “tripartir” o substantivo “celeuma” em “se lê uma” parece encenar a visão diplópica, enquanto encena também a estrutura de uma errata. Considerando, no entanto, essa vasta tradição de poemas que falam da lua, os poemas de Leminski e de Carlito percebem que uma lua nunca é somente uma lua, nem duas, mas um complexo signo que incorpora história e mito, que movimenta ciência e fantasia, que entrecruza linguagens e repertórios.

Nesse entrecruzamento, é plausível supor que o poema Traduzir de Carlito Azevedo (1991), seja uma espécie de resposta à questão final de Traduzir-se, de Ferreira Gullar (Na vertigem do dia, 1980): “Traduzir uma parte/ na outra parte/ — que é uma questão/ de vida ou morte — / será arte?”. As “duas linguagens diferentes” — uma que é minguante e outra que é crescente, uma que soa e outra destoa (porque ausente), uma lua no céu e outra no papel, uma lua real e outra lua na arte — não são ecos de uma pergunta que, sem solução, ecoa sem cessar? Mesmo indiferente a nossos anseios e fetiches terrenos, a lua é o astro em torno do qual tanta arte, tanta poesia se produz, séculos afora. É lua aqui, lua lá, lua para todo brilho e paladar.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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