Para o homem e a mulher que vi sentados à mesa numa tarde de sol em Londres
Procure e quase não encontrará mais histórias de amor. Talvez encontre rastros das que foram se apagando em meio a telefonemas decisivos, recortadas por fusos e geografias, ou pautadas por silêncios engolidos à espera da hora certa para a ruptura que jamais virá. Não há mais histórias de amor dando sopa por aÃ. O mundo se ocupa de gabinetes do ódio, de doença e de morte que menosprezam, inutilizam, ridicularizam o amor. Nem para tema de crônica ele serve mais, sempre tardio, sempre inconveniente, sempre fora de hora e fora de moda. Mas lá está respirando com ajuda de aparelhos, copos de vinho e uma tarde de sol. Não sei exatamente a que horas acontece o amor ou em que canto da cidade explode, precedente a um lapso e à espreita de uma lacuna, mas há notÃcias de uma dessas histórias que aconteceu sob uma imensa e concorrida sombra da copa de uma tÃlia como testemunha e ali mesmo os dois se apaixonaram. Seus pés apoiavam-se no chão da cidade velha, sujo de chicletes grudados e rastreado por ratos noturnos em busca da felicidade ou de um pedaço de queijo — o que é a mesma coisa.
A tÃlia era testemunha. Cuidava dos dois com gentileza, enquanto alimentava os risos nervosos com bebida para que se acalmassem, para que dissessem a verdade debaixo de todo aquele vinho. E a verdade não demorou a aparecer: estavam apaixonados naquele exato minuto. Lá estava, dava para ver, o desejo dentro daqueles olhos que, juntos, formariam o mais belo chiaroscuro já sonhado por Caravaggio. Todavia, tinham cautela e, com a cautela, passaram a espalhar dúvidas por todo lado. Passar amor é o mais próximo possÃvel de passar vergonha.
A tÃlia é uma árvore que precisa de espaço e profundidade para se fortalecer. É também altÃssima e longeva. Tão velha quanto as histórias de amor de que se tem notÃcia e o desejo que se espalha nas pontas elétricas dos dedos tensos, à espera, à espera.
Imagino que os dois pobres-diabos tenham saÃdo de debaixo da sombra da árvore para irem a um esconderijo por algumas horas. E por mais desejo que tenham tido de estarem a sós, é sempre uma pena que tenham deixado a tÃlia porque debaixo daquela árvore é onde carregam com eles o brilho de seus corpos celestes. Quando acordaram, pernas, braços e bocas estavam quietos e em silêncio. Qualquer movimento os traria de volta ao céu aberto e cinza sem sombra da tÃlia. Na correria para a vida normal não houve nem tempo para perguntar se o outro foi feliz.
Quando terminaram um de ocupar o outro, voltaram a falar de rotina, de culpa, e esses assombros os fazem vulgares. Mas nada abala o amor tanto quanto o anseio por um plano. O amor não tem futuro; ele acontece agora mesmo. O amor é extraordinário e não merece futuro nenhum.
Desfizeram o movimento imóvel do que tinham acabado de ser, como quem olha ao redor procurando as roupas para catar do chão. Era hora de acalmar a respiração, domar os pelos arrepiados, controlar as mãos, morrer, enfim, o que é normal.
Talvez seja possÃvel voltar para debaixo da copa da árvore e se apaixonar de novo, dia desses. Mas não é fácil porque há sempre aquela fila enorme de gente lá fora e nem sempre é possÃvel achar lugar debaixo da tÃlia tão concorrida. E, honestamente, quem ainda tem paciência com o amor?
Nota
TÃlia em inglês, Linden, é uma árvore autóctone da Europa e que simboliza o amor. Não tolera o frio extremo e seu solo precisa ser fértil e irrigado. Sua casca serviu para a produção de vinho na antiguidade romana. Algumas das sobreviventes dos tempos chegam a ter 500 anos de vida alta, forte e profunda, e são raras como o amor despreocupado com o futuro.