🔓 Sociologia da portaria

As entregas aumentaram muito na pandemia e, com elas, a conversa fiada, arrastada, a incidência de sorrisos amarelos e os acenos de cabeça sem-graça
Ilustração: Tereza Yamashita
25/03/2021

Vejo no aplicativo que o entregador do hortifruti está perto e desço. Adoro quando tem o mapinha que evita a rotina interfone-toca-atende-estou-indo-pessoa-espera.

A quarentena escancarou o que eu chamo de “sociologia da portaria”. A quantidade de entregas aumentou muito e, com ela, a conversa fiada, arrastada, rasa. Aumentaram também a incidência de sorrisos amarelos e os acenos de cabeça sem-graça.

Cabeça baixa, olhando pro mapinha no celular, uma vizinha interrompe minha paz para perguntar do meu pai. Acho simpático, sorrio com sinceridade, respondo. Ao levantar o olhar, percebo a fauna à minha volta.

Entra uma senhora deixando um rastro de cigarro com perfume barato que até alguém com covid é capaz de sentir. Um dos primeiros sintomas mais comuns da doença, como todos sabem, é nos transformar em boto, animal anosmático (que não tem olfato). Deixo por sua conta decidir quem é a Iara, conduzindo os homens à morte com seu canto enganoso.

Entra o vizinho simpático com os dois cachorros iguais. Ele aguarda, gentil, eu brincar com os bichanos. Puxo conversa, mas ele está mais interessado no celular. Tudo bem, eu estou mais interessada nos cachorros, empate.

O vizinho insuportável passa e sorri amarelo. Ele também não gosta de mim. Chega a vizinha fascista e passa direto, felizmente. Há muito, bem antes da pandemia, eu decidi adotar a política de não discutir com vizinho. De uma forma geral, evito brigar com quem sabe onde eu moro.

Ifood para alguém. Tenho uma certa curiosidade de que tipo de pessoa manda entregar um único copo de alguma coisa mas o hortifruti chega e eu volto para casa. Prédio velho, só um elevador. O trânsito é grande. O porteiro decide atestar que está vivo e abre a porta para mim. Entro. Chego no andar. Abro a porta com o pé. Horas depois, desço com o lixo e a interação forçada se repete.

A interação com pessoas que não compartilham nada além de um CEP é velha, mas a pandemia a agravou. Tem, ainda, aqueles que, por falta de interação humana, ativamente desejam encontrar com pessoas nessa arena contemporânea e, de uma maneira terrivelmente proativa, buscam esse contato. Só faltam os leões e os gladiadores.

Roma Antiga, para quem não era da classe social dos bacanas (e seus bacanais), era composta de casas minúsculas, com mendigos e pedintes por todo lado. Mulher era tratada como objeto, como propriedade de homem. Especialmente nas classes mais altas, eram escravos que cuidavam da alfabetização e da educação básica das crianças. A cidade era toda pixada, com dizeres políticos, declarações de amor e anúncios. A medicina era precária e falha, à diferença dos gregos, que valorizavam os médicos. Mais de 2 mil anos se passaram e a gente continua aqui. Edmund Burke estava mais certo do que imaginava: “Um povo que não conhece sua História está fadado a repeti-la”.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho