🔓 Sociedade secreta dos assombrados

Que espécie de estranho evento pôs outros olhos nos teus e veio enlouquecer teus sentidos, tua história, tua memória?
Frida Kahlo / Reprodução
16/01/2021

Acorda para o dia, camarada. Hoje pode te acontecer qualquer coisa de inimaginável. Qualquer coisa que vai te bagunçar as ideias para sempre. Uma notícia que, com o tempo, não perderá seu teor explosivo, não será substituída nem completamente assimilada, espantosa e estonteante prolongando vetores numa revolução hipercúbica.

A partir daí, até as coisas mais cotidianas vão confundir tua confiança. Senta um pouco, respira fundo, mesmo que as coisas pareçam ainda estar à tua espreita, respirando contigo, te observando. Mas o que foi que te aconteceu? Me conta. Que espécie de estranho evento pôs outros olhos nos teus e veio enlouquecer teus sentidos, tua história, tua memória, como se, do nada, no teu caminho se interpusesse uma grande asa? Me conta.

E se eu te dissesse que de fato já aconteceu com alguém, uma vez, isso de uma grande asa aparecer do nada? E a coisa inaudita desse fato é que não se tratava de asa de pássaro, muito menos de mariposa. Está certo que não é fácil recontar um fato desses portando junto sua ignição, seu susto de seta afogueada. Tem gente que se passasse por isso preferiria se despistar de si mesmo, barrar com uma risada o olho do assombro. Tem gente que não esqueceria nem se tentasse, embora nunca tocando no assunto, para assim o devolver, mesmo que superficialmente, ao nada.

Pode ser que falando assim, naturalmente, sobre esses inimagináveis, os que já estiveram ali se reconheçam como numa sociedade secreta dos assombrados. Mas, se isso ainda te soa simplesmente muito estranho, além de risível, se te parece ainda só literatura, excêntrico motivo de crônica, apoio com toda sinceridade teu bom senso, tua feliz tridimensionalidade, camarada. Defendo, até segunda ordem, teu bem-estar mental, que também já foi o meu, dias atrás.

Mariana Ianelli

Nasceu em São Paulo em 1979. Formada em jornalismo, mestre em literatura e crítica literária, estreou na poesia em 1999 com Trajetória de antes. Em 2013, estreou na crônica com Breves anotações sobre um tigre. É também autora de dois livros infantis. Desde agosto de 2018, edita a página Poesia Brasileira no Rascunho. Escreve quinzenalmente, aos sábados, na revista digital de crônicas Rubem.

Rascunho