Confesso que tenho em mim (todos os sonhos do mundo e) uma enorme dicotomia entre odiar e amar o carnaval.
O Ăłdio está depositado em todos os seus preconceitos: gordofobia, machismo, racismo etc. A commedia dell’arte Ă© considerada a origem do carnaval contemporâneo e tinha como grande mĂ©rito “revolucionário” serem peças faladas em italiano e nĂŁo em latim. Do sĂ©culo 16 para cá, muita coisa passou nesse rio, incluindo escravidĂŁo, capoeira, sincretismos e outros abrasileiramentos. Segundo CecĂlia Meireles, no livro Batuque, samba e macumba: estudos de gestos e rituais 1926-1934, o batuque vem do ritual de adestramento masculino para as guerras. Ou seja, muita coisa ruim misturada. Mais recentemente, o carnaval desaguou em globelezas e outras misoginias. Fica difĂcil defender.
O amor, por sua vez, está inteiramente derretido na mĂşsica. A propaganda que a Brahma fez com a Alcione arrepia atĂ© os mais insensĂveis. Se vocĂŞ nĂŁo se emociona ouvindo “Quando eu nĂŁo puder/ Pisar mais na avenida/ Quando as minhas pernas/ NĂŁo puderem aguentar/ Levar meu corpo/ Junto com meu samba/ O meu anel de bamba/ Entrego a quem mereça usar” naquela voz marrom divina no sambĂłdromo vazio, amigo, vocĂŞ está morto por dentro. NĂŁo importa se vocĂŞ, como eu, prefere a avenida Paulista em um dia Ăştil Ă SapucaĂ no feriado. SĂł a mĂşsica e a poesia nos salvam. Um paĂs que produziu Paulinho da Viola, Chico Buarque, Elizeth Cardoso, Clara Nunes, Dona Ivone Lara, Gilberto Gil, Beth Carvalho, Cartola, Pixinguinha, Adoniran Barbosa e Noel Rosa nĂŁo pode ser de todo ruim.
Quando eu ainda morava no Rio de Janeiro, 2 blocos faziam concentração na porta do meu prédio: o Imprensa que eu gamo, e o Quem num guenta bebe água. Os nomes dos blocos cariocas são toda uma literatura à parte. O que eu mais gosto, disparado, é o Trema na lingüiça. Na época, com filho pequeno, obviamente passei pelo ritual de iniciação à maternidade que envolve fantasia de carnaval e bloquinho com criança. Não tem treinamento dos mariners que te prepare para uma coisa dessas. Primeiro, começa a concentração. A gente morava em um apartamento de frente. As paredes tremem e o seu cérebro entra em convulsão. A cachorra se esconde embaixo do sofá e você vai olhar se tem espaço para mais um. A impressão que dá é que alguém está fazendo uma obra dentro do seu pulmão. Nesse momento fica fácil de entender como as pessoas surdas conseguem dançar. A música, especialmente a percussão, atinge o seu corpo como um soco.
O melhor a fazer Ă© desistir, se entregar e descer para o bloco.
É mais ou menos assim. VocĂŞ pega água, protetor solar, roupa leve para quando seu filho se irritar com a fantasia, toalhinhas umedecidas, dinheiro trocado, cĂłpia da carteira de identidade e barrinhas de cereal. Coloca o dinheiro, a identidade e o celular no bolso da frente para nĂŁo ser roubada, o resto numa bolsinha pequena com zĂper, pega a mĂŁo de filho e vai. Assim que vocĂŞ chega na rua, a criança quer ir no banheiro. VocĂŞ sobe e repete. Desce. Entra no bloquinho. Querem te vender de absolutamente tudo: abadás, cerveja, refrigerante, espetinho, caipirinha de origem duvidosa, milho verde, confete, serpentina, trompete, apito, vuvuzela, um imĂłvel e trĂŞs elefantes amestrados.
Chega uma hora que a boa educação já foi esquecida e vocĂŞ sĂł passa de cara amarrada segurando firme a mĂŁo da criança na multidĂŁo. A criança pede colo. VocĂŞ coloca a bolsa, contendo todo o lixo inĂştil que vocĂŞ levou, transpassada e, quase morrendo enforcada, pega a criança no colo. O chapĂ©u de cowboy entra no seu olho e vocĂŞ leva uns bons 5 minutos convencendo seu filho de que ele nĂŁo será menos cowboy sem o chapĂ©u. VocĂŞ começa a se dirigir de volta para casa. Nesse momento entĂŁo aprende que nĂŁo Ă© porque está carregando a criança no colo que ela está cansada. NĂŁo… VocĂŞ está carregando a criança no colo porque Ă© trouxa. Volta para o bloquinho, que nĂŁo anda, Ă´ misĂ©ria.
Agora você já desistiu de se incomodar com passadas de mão, bêbados inconvenientes às 3 da tarde e nem nota mais a fauna formada ao seu redor. Tudo o que você quer é banho e silêncio. O tempo demora a passar e você se pergunta como será a festa junina no dia seguinte. Quando, finalmente, a criança se dá por vencida e você consegue voltar, percebe que seus pés estão sangrando e que você passou protetor solar na criança mas esqueceu de passar em você. Você aqui, claro, é genérico. Eu não, eu jamais faria uma coisa dessas. De volta em casa, você dá banho na criança sonâmbula e depois quase se afoga no chuveiro. Você se enterra no sofá e torce para não ter mais nenhum bloquinho na sua porta. Você lembra então que mora em Laranjeiras e que será esse inferno por mais duas semanas. Talvez, só talvez, tenha sido ali que eu decidi me mudar para São Paulo.
Existe uma remota possibilidade de eu amar samba e odiar carnaval. Remota. ĂŤnfima.