🔓 Saudade na rampa do mundo

A catarse coletiva de um show, a alegria subindo pelo corpo, os pulos feito maluca, os berros com os pulmões
Ilustração: Carina S. Santos
03/04/2023

É bem verdade que eu nunca fui uma fonte inesgotável de energia, essa gente que nunca vai embora, que emenda um programa no outro e no outro e chega em casa com a luz do sol. Mas agora, com quase quarenta, talvez seja o meu pior momento: eu e a minha cama estamos bastante íntimas, a gente passa muito tempo juntas. Também instalamos em casa uma rede, e o que posso dizer é que a competição ficou séria. Sim, eu gosto do sossego, do conforto, do silêncio.

De modo que, num domingo desses, depois de enfrentar quarenta minutos de trânsito, vinte de caminhada, trinta e cinco de fila e duas horas de espera, eu disse, convencida (e com sede e sem forças para enfrentar mais uma fila):

— Esse conceito de show é muito estranho. São as mesmas músicas, porque é que a gente não escuta de casa, sabe?

Oito minutos depois as luzes se apagaram e subiram no palco, para um último show, aqueles quatro caras que eu escuto desde sempre, aqueles caras que tocavam as músicas cujas letras me fizeram olhar para as palavras com um olhar mais interessado, mais curioso, mais encantado. Aqueles quatro caras que, de tão pops, me fizeram, em algum momento, sentir vergonha de dizer que eu gostava deles — o que é claro, já não me acontece hoje, com quase quarenta. Eu digo com o restinho de voz que me sobrou: eu adoro esses caras, eu adoro o Skank.

O conceito de show é meio mágico, uma catarse coletiva, uma alegria que vai subindo pelo corpo e quando você vê tá lá, pulando feito maluca, berrando com os pulmões e sei lá mais o quê, chorando quando eles resolvem tocar aquela lado B que quase ninguém se lembra, mas que é uma das suas favoritas e você nunca achou que fosse ouvir assim, num show. Você tá lá, catando a vida pelas patas, dando tapas no destino, um coração vermelho imenso piscando na tela do seu telefone. Você tá lá, com outras cinquenta mil pessoas, que devem estar sentindo mais ou menos a mesma coisa que você. O bonito do show é sentir junto.

As mais de três horas passaram como se fossem quinze minutos, como se eu estivesse confortavelmente instalada na minha cama macia, como se o mundo inteiro estivesse ali. E, de repente, ele estava, nos passos cansados mas ainda certeiros do Milton, naquela voz imensa que nos atravessa a todos. O Milton ele mesmo fez o seu último show há alguns meses, nesse mesmo Mineirão lotado. Eu tinha ingressos, mas não pude ir, coisas da vida. E em algum lugar, ainda me ressentia dessa ausência. E, de repente, o mundo inteiro ali, dizendo que o vento desfaz as coisas. Desfaz mesmo, depois refaz.

Um amigo disse: ser mineiro é bom demais. A gente acorda com dor em uns músculos que a gente nem sabia que tinha, com bolhas nos pés e com a garganta pedindo socorro? Acorda. Mas a gente se lembra de um certo domingo e a gente sorri.

Marcela Dantés

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1986. Lançou em 2016 a coletânea de contos Sobre pessoas normais (Patuá). Seu primeiro romance, Nem sinal de asas (Patuá), foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2021 na categoria Melhor Romance de Estreia e do Prêmio Jabuti 2021, na categoria melhor Romance Literário. Em 2022, lançou João Maria Matilde, pela Autêntica Contemporânea.

Rascunho