🔓 Satélites que estragam o céu e caixas d’água que ganham afeto

A luta de moradores de um bairro em Porto Alegre para que um símbolo local não deixe de existir e continue sendo uma referência que serve apenas para ser olhado
Ilustração: FP Rodrigues
18/02/2022

Os satélites que Elon Musk colocou para orbitarem a Terra estão estragando o céu. É o que leio numa matéria sobre os rastros de luz que eles deixam para trás, atrapalhando a observação de corpos celestes. A matéria depois esclarece que os rastros dos satélites não impossibilitam a observação, eles apenas deixam riscos retos em imagens que, caso contrário, teriam sido imagens bastante bonitas.

O mais adequado, portanto, seria talvez dizer que os satélites do Elon Musk estão estragando a paisagem do céu.

Embora muito valorizadas nos panfletos de novos empreendimentos imobiliários, a proteção às paisagens não costuma ser um conceito muito popular. No início dos anos 2000, minha mãe esteve envolvida num movimento que pedia a não-demolição de uma velha caixa d’água no bairro em que cresci, e onde morávamos então. A caixa d’água não funcionava como caixa d’água havia muitos anos. Era antiga, tinha cara de antiga, e não haveria pintura capaz de disfarçar sua antiguidade. Mas nós gostávamos dela.

Nas petições e relatórios enviados a vereadores, secretarias municipais e outros órgãos que decidem coisas nas cidades, o principal argumento para manter a caixa d’água de pé era a preservação da memória. Mas havia, também, com menos ênfase, a ideia de preservação de uma paisagem. Vejam bem, senhores vereadores, estamos acostumados a essa caixa d’água, a gente olha para ela todos os dias, a gente diz para os taxistas ‘nossa casa fica logo ali depois da caixa d’água’, a gente chama a pracinha de ‘pracinha da caixa d’água’, ela serve como motivo para olharmos para cima, para vermos onde ela acaba, para constatarmos que ela ainda está lá, ela serve só para isso, para ser olhada e constatada, mas serve.

O céu serve para muita coisa, tenho certeza, embora meus conhecimentos científicos limitados não me permitam imaginar sequer metade de suas utilidades. Para mim, sua principal serventia sempre foi ser olhado.

Vivo numa cidade de inúmeros defeitos (inclusive no seu plano diretor), mas é uma cidade de belíssimo céu. Dizem que é porque Porto Alegre está no paralelo trinta, o que garantiria alguma coisa que faz do nosso céu e da nossa incidência solar dignos de nota.

Quando Albert Camus esteve por aqui em 1949, ele disse “a luz é bonita, a cidade, feia”. Há manhãs de azul limpíssimo, há nuvens que desenham tênues linhas quase desintegradas, há nuvens gordas e dramáticas, a luz bate de um ângulo que suaviza os contornos de prédios e de corpos, o entardecer é rosa, depois laranja e depois azul marinho. Talvez por essa abundância de eventos celestiais tão próximos, nunca cogitei comprar um telescópio para observar o céu noturno, de modo que não faz diferença para mim se satélites estão poluindo a escuridão com linhas iluminadas não perceptíveis a olho nu.

Não faz diferença para mim e, ainda assim, me incomoda que as linhas estejam lá.

Me parece injusto que as linhas estejam lá.

Sinto, arrogante e megalomaniacamente, que eu deveria ter sido consultada sobre as linhas estarem lá.

E me dá pena dos amadores observadores celestes que, nos seus telescópios, precisam contemplar a assinatura luminosa de um bilionário que ocupa espaço demais. Eles não têm uma câmara de vereadores a quem recorrer. Ninguém aceitaria esse abaixo-assinado.

No bairro da minha infância, a caixa d’água da pracinha continua de pé até hoje. Uma pequena vitória dos pequenos cidadãos. No céu portoalegrense, as nuvens persistem em seus reflexos solares. Um pequeno alento onde edifícios se esforçam cada vez mais para arranhar o céu. Mas orbitando ao nosso redor está esse lembrete de que as paisagens se perdem, assim como imagino que, lá em 1930, alguém no antigo bairro deve ter lamentado a chegada de uma monstruosa caixa d’água.

Julia Dantas

Nasceu em Porto Alegre (RS). É editora, tradutora e doutoranda em Escrita Criativa pela PUCRS. É autora de Ruína y leveza (Não Editora, 2015) e organizadora de Fake Fiction: contos sobre um Brasil onde tudo pode ser verdade (Dublinense, 2020).

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