Foi de meus pais que herdei o hĆ”bito de comer fora. Com chuva ou sol, todo domingo saĆamos de carro para almoƧar. O debate sobre o restaurante rendia pendengas longuĆssimas ā muitas vezes, traumĆ”ticas. Mas atĆ© a chegada do garƧom Ć mesa, a demanda jĆ” estava pacificada. Nos dias de trabalho, meu velho comia nas pensƵes ali pelo entorno da Avenida Edgard Romero, onde ficava sua loja. Sempre preferiu comida caseira, ainda que fora de casa. Rabada, carne de panela, dobradinha. O que nĆ£o variava era a sobremesa: goiabada com queijo. Ou melhor, Romeu e Julieta.
Quando crianƧa, eu adorava esse nome, embora nĆ£o conhecesse ainda as peƧas de Shakespeare. A junção dos substantivos masculino e feminino me sugeria um casal. Nada mais. Alguns anos depois, fui entender que a sobremesa efetivava a uniĆ£o entre os dois, que nĆ£o tinha sido possĆvel no Ć¢mbito da ficção. āTudo que Ć© feliz nĆ£o tem direito Ć eternidadeā, diz um verso de Delcio Carvalho e Dona Ivone Lara. Pois a goiabada com queijo desmentiu, com galhardia e sabor, a canção. Ponto para a baixa gastronomia.
Curioso Ć© saber que esse apelido surgiu graƧas a uma campanha publicitĆ”ria. No comeƧo dos anos 1960, o desenhista MaurĆcio de Souza foi contratado para criar a nova embalagem da goiabada Cica. EntĆ£o pegou dois de seus mais famosos personagens, Cebolinha e MĆ“nica, e caracterizou como Romeu e Julieta. NĆ£o demoraria atĆ© que pulassem das latas da Cica para os cardĆ”pios dos restaurantes. AtĆ© porque a combinação do doce com o salgado tinha tudo a ver com o romance entre jovens de famĆlias rivais, que Shakespeare ambientou na cidade italiana de Verona. A Cica encerrou suas atividades em 2003, mas a sobremesa continua por aĆ, firme como a obra do Bardo.
Nas incursƵes com meu pai pelas pensƵes suburbanas, nĆ£o nos limitĆ”vamos a Madureira. Frequentamos casas de ācomida honestaā ā como ele gostava de frisar ā em Cascadura, Bento Ribeiro, Oswaldo Cruz, Campinho, Piedade. Foi uma verdadeira introdução ao paladar brasileiro e tambĆ©m a seu riquĆssimo idioma. Sim, porque descobrir a origem dos nomes dos pratos Ć© quase tĆ£o prazeroso quanto devorĆ”-los.
O que dizer do Bife a Cavalo? Um filĆ© coberto por dois ovos que, por lembrar selas de montaria, os franceses comeƧaram a chamar de Bifteck Ć Cheval. Por lĆ”, Ć© conhecido igualmente como Ovo a Cavalo (Oeuf Ć Cheval), designação mais apropriada, jĆ” que sĆ£o os ovos que montam a carne. O prato logo se popularizou em terras tupiniquins. E, aqui, ganhou nova versĆ£o. No Bife Ć CamƵes, hĆ” apenas um ovo, donde a āhomenagemā ao poeta portuguĆŖs, que era caolho. Dia desses um amigo se deparou com o Bife Ć Peritivo, mas aĆ jĆ” Ć© licenƧa poĆ©tica.
JĆ” o tradicional FilĆ© Ć Francesa nunca foi servido na Cidade Luz, nem em seus arredores. Nasceu na Lapa carioca, mais especificamente no restaurante Capela (hoje, Nova Capela), onde um contumaz cliente francĆŖs pedia que a batata palha viesse acompanhada de presunto, cebola e ervilhas. De tanto os garƧons comandarem o āfilĆ© do francĆŖsā, a corruptela virou nome.
O Arroz Ć Piemontese tampouco consta dos cardĆ”pios do Piemonte, assim como Bife Ć Parmegiana inexiste em Parma. Se vocĆŖ pedir um Arroz Ć Grega em Atenas, ninguĆ©m vai saber do que se trata. SĆ£o, todos, brasileirĆssimos. Alguns foram criados por imigrantes que desejavam preparar seus quitutes mas nĆ£o encontraram os ingredientes em nossos mercados. Ć o caso do piemontese, uma gambiarra do risoto. Outros ganharam identidade por questƵes meramente pessoais, como a que moveu dona Silvia Maria do EspĆrito Santo, uma cozinheira de Campinas, a batizar de Torta Holandesa seu pavĆŖ repaginado. O tributo aos tempos em que viveu em Amsterdam.
Embora meu pai tenha sido o condutor de toda essa viagem, das ruas de Madureira ao continente europeu, ao longo de toda a sua vida nunca conversamos sobre o assunto. Ele era um homem prĆ”tico. Nos bares e nas pensƵes, preferia falar das coisas da loja, do seu Botafogo, ou simplesmente exercitar o levantamento de copo e garfo. LĆngua, só mesmo se acompanhada de um bom purĆŖ de batatas.