🔓 Romeu e Julieta

Em companhia do pai, um passeio pela baixa gastronomia brasileira por bares e restaurantes cariocas
Ilustração: Oliver Quinto
11/01/2023

Foi de meus pais que herdei o hábito de comer fora. Com chuva ou sol, todo domingo saíamos de carro para almoçar. O debate sobre o restaurante rendia pendengas longuíssimas — muitas vezes, traumáticas. Mas até a chegada do garçom à mesa, a demanda já estava pacificada. Nos dias de trabalho, meu velho comia nas pensões ali pelo entorno da Avenida Edgard Romero, onde ficava sua loja. Sempre preferiu comida caseira, ainda que fora de casa. Rabada, carne de panela, dobradinha. O que não variava era a sobremesa: goiabada com queijo. Ou melhor, Romeu e Julieta.

Quando criança, eu adorava esse nome, embora não conhecesse ainda as peças de Shakespeare. A junção dos substantivos masculino e feminino me sugeria um casal. Nada mais. Alguns anos depois, fui entender que a sobremesa efetivava a união entre os dois, que não tinha sido possível no âmbito da ficção. “Tudo que é feliz não tem direito à eternidade”, diz um verso de Delcio Carvalho e Dona Ivone Lara. Pois a goiabada com queijo desmentiu, com galhardia e sabor, a canção. Ponto para a baixa gastronomia.

Curioso é saber que esse apelido surgiu graças a uma campanha publicitária. No começo dos anos 1960, o desenhista Maurício de Souza foi contratado para criar a nova embalagem da goiabada Cica. Então pegou dois de seus mais famosos personagens, Cebolinha e Mônica, e caracterizou como Romeu e Julieta. Não demoraria até que pulassem das latas da Cica para os cardápios dos restaurantes. Até porque a combinação do doce com o salgado tinha tudo a ver com o romance entre jovens de famílias rivais, que Shakespeare ambientou na cidade italiana de Verona. A Cica encerrou suas atividades em 2003, mas a sobremesa continua por aí, firme como a obra do Bardo.

Nas incursões com meu pai pelas pensões suburbanas, não nos limitávamos a Madureira. Frequentamos casas de “comida honesta” — como ele gostava de frisar — em Cascadura, Bento Ribeiro, Oswaldo Cruz, Campinho, Piedade. Foi uma verdadeira introdução ao paladar brasileiro e também a seu riquíssimo idioma. Sim, porque descobrir a origem dos nomes dos pratos é quase tão prazeroso quanto devorá-los.

O que dizer do Bife a Cavalo? Um filé coberto por dois ovos que, por lembrar selas de montaria, os franceses começaram a chamar de Bifteck à Cheval. Por lá, é conhecido igualmente como Ovo a Cavalo (Oeuf à Cheval), designação mais apropriada, já que são os ovos que montam a carne. O prato logo se popularizou em terras tupiniquins. E, aqui, ganhou nova versão. No Bife à Camões, há apenas um ovo, donde a “homenagem” ao poeta português, que era caolho. Dia desses um amigo se deparou com o Bife à Peritivo, mas aí já é licença poética.

Já o tradicional Filé à Francesa nunca foi servido na Cidade Luz, nem em seus arredores. Nasceu na Lapa carioca, mais especificamente no restaurante Capela (hoje, Nova Capela), onde um contumaz cliente francês pedia que a batata palha viesse acompanhada de presunto, cebola e ervilhas. De tanto os garçons comandarem o “filé do francês”, a corruptela virou nome.

O Arroz à Piemontese tampouco consta dos cardápios do Piemonte, assim como Bife à Parmegiana inexiste em Parma. Se você pedir um Arroz à Grega em Atenas, ninguém vai saber do que se trata. São, todos, brasileiríssimos. Alguns foram criados por imigrantes que desejavam preparar seus quitutes mas não encontraram os ingredientes em nossos mercados. É o caso do piemontese, uma gambiarra do risoto. Outros ganharam identidade por questões meramente pessoais, como a que moveu dona Silvia Maria do Espírito Santo, uma cozinheira de Campinas, a batizar de Torta Holandesa seu pavê repaginado. O tributo aos tempos em que viveu em Amsterdam.

Embora meu pai tenha sido o condutor de toda essa viagem, das ruas de Madureira ao continente europeu, ao longo de toda a sua vida nunca conversamos sobre o assunto. Ele era um homem prático. Nos bares e nas pensões, preferia falar das coisas da loja, do seu Botafogo, ou simplesmente exercitar o levantamento de copo e garfo. Língua, só mesmo se acompanhada de um bom purê de batatas.

Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’água (Prêmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (Prêmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

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