Uma vez, numa reunião, falei a uma professora que retiraria ou evitaria todas as notas de rodapé de determinado texto; ou que eu mesma não escreveria aquelas notas, nem no pé da página, nem ao final do escrito; ou que notas de rodapé nos levam a uma leitura interrompida, meio fragmentária, um tantinho desviante, que geralmente me dava uma tonteira, uma indisposição, talvez fosse distração demais, e pior ainda se, por algum acaso, a nota fosse melhor e mais interessante do que o texto principal. Bem, do que me lembro mesmo foi da resposta que recebi em defesa das notas. Disse a professora, infelizmente já falecida, que as notas tinham, sim, sua importância, e deu alguns exemplos de notas que não caberiam no corpo do texto, que tinham um quê de comentário necessariamente exterior, uma espécie de apêndice que não caberia na linha geral.
Lembro bem do respeito que senti pela opinião da professora. Não era bem uma opinião, isto é, não era desinformado ou qualquer coisa, mas era um comentário discordante — do meu — que vinha de uma pessoa leitora, dedicada aos estudos das linguagens, conhecedora de muitos livros, escritora e atenta à composição dos textos, inclusive os que eu lia e usava como referência para meus trabalhos até ali (e além). A fala da professora suspendeu minhas certezas, me deixou um pouco muda, mas pensante, bem pensante, tentando apreender se o que ela dizia fazia sentido para mim, se me demovia da minha primeira ideia, se era apenas uma questão de conciliação ou se seria substituição mesmo. Se minha certeza era férrea, ou algo mais plástico, que pudesse ser remodelado conforme as conversas que eu ia tendo ao longo do dia, da semana, da vida. Pensei um pouco sobre as notas de rodapé. Imaginei algumas realmente necessárias. Passei a achar que caso a caso era o melhor modo de avaliar, examinar, considerar. Deixei de lado certa presunção juvenil, mas nunca fui ruim nisso. Ouvir pode ser uma das minhas qualidades, quem sabe?
Recentemente, tive de estudar inteiro um livro conhecido sobre paratextos editoriais, de um estudioso francĂŞs chamado GĂ©rard Genette. Nas Letras ele circula com bastante facilidade, ou ao menos Ă© citado em todo canto, mesmo que nĂŁo seja efetivamente lido (sabemos como acontece). Em um dos capĂtulos, o autor se dedica Ă s notas, subdividindo-as em tipos e, mais importante, enganchando-se em um debate que nos tonteia de um jeito gostoso: nota Ă© algo do texto ou Ă© parte do que está fora dele? DirĂamos, em bom portuguĂŞs: depende. Conforme a nota, em especial se ela Ă© escrita pelo prĂłprio autor ou autora do texto, ela pode ser muito semelhante ao que poderia ter sido escrito entre parĂŞnteses, ou faz parte, sim, do corpo “principal”. Em outros casos, ela Ă© claramente algo como um apĂŞndice, um anexo, um extra, em especial se foi escrita por outros, tais como editores, tradutores, comentadores de toda sorte. E aĂ entram mais elementos nesta equação difĂcil: se foi escrita já desde o original, na primeira publicação de um livro; se apareceu depois; e mesmo muito depois, inclusive postumamente. E assim vamos tratando de pensar que o “depende” Ă© a resposta mais sensata a muita coisa neste mundo.
Uso, afinal, notas, Ă s vezes em profusĂŁo. Houve textos em que precisei explicar o que ia já explicado no corpo principal, mas que precisava de mais detalhe ou já me blindando de alguma crĂtica ou incompreensĂŁo; a nota se assemelhando a uma conversa imaginária com alguĂ©m que precisa saber mais, que pode querer uma explicação, que talvez nĂŁo entenda bem, no sentido que quero manter. Ou a nota como uma intromissĂŁo, um distrator da leitura corrente, em direção Ă leitura coerente. Ou Ă© apenas o que pensamos quando escrevemos e temos esse desejo prĂ©-frustrado de que a leitura seja uma espĂ©cie de duplo perfeito do que queremos dizer. E quem disse que controlamos completamente o que dizemos?
Recentemente a discussão sobre notas voltou quente, em especial quando, ao editar textos literários, pensamos se devemos ou não explicar, associar, desassociar, provocar, realinhar órbitas. Ou deixamos que o leitor/a leitora se desviem quanto quiserem? Ou passeiem mais livremente por um texto sem puxadinhos; ou sejam atiçados por números sobrescritos e asteriscos que os tirem de uma camada e levem, rapidamente, a outra? Para quê? E estamos presumindo que leitor/que leitora?
De repente, dei com as notas da edição brasileira das Flechas, de Matilde Campilho. Notas-jogos, notas-provocação, notas-enciclopĂ©dia, notas-fĂmbrias, notas-dĂşvida, notas que respondem mal, notas que nos põem Ă deriva em vez de melhorar a navegação. E que bom. As notas sempre pegando no meu pĂ©, alĂ©m do pĂ© da página. As notas vĂŁo e vĂŞm, necessárias ou irrelevantes, ensinando que dentro de uns dizeres há outros. Minha professora, onde quer que descanse, tinha razĂŁo em defender as notas, ou ao menos em nĂŁo me deixar jogá-las fora assim tĂŁo facilmente. Cabe nota, cabe uma dedicatĂłria, agradecimento, asterisco.