🔓 Raimundo Samuel gosta de One Piece

Como a incompetĂȘncia em lidar com o Ăłcio pode transformar alguĂ©m em “workaholic” ou na “louca dos gatos”
Ilustração: Thiago Thomé Marques
27/05/2021

Entrego um enorme trabalho que contou com um prazo desumano e vem a ressaca. É um misto de cansaço com vazio. Começo a pensar em mil projetos mirabolantes e o que fazer com o tempo que agora tenho. Descubro que Ă© por nĂŁo saber o que fazer com tempo livre que me tornei workaholic. NĂŁo Ă© por vaidade, necessidade de posteridade ou qualquer outra idiotice do gĂȘnero. NĂŁo, nada disso. É por pura e simples incompetĂȘncia em lidar com o Ăłcio.

É assim que imagino como serĂĄ a minha vida quando meu filho for independente e nĂŁo morarmos mais juntos, a tal sĂ­ndrome do ninho vazio. O que fazer com esse tempo, com essa energia que agora estĂĄ sobrando? Como serĂĄ quando o Ășnico ser que me Ă© mais importante do que eu mesma nĂŁo depender mais de mim?

O que me aflige nĂŁo Ă© a desimportĂąncia. Com essa eu aprendi a lidar muito cedo.

Acreditei no mito urbano de que crianças pequenas precisam de adaptação ao entrar na escolinha. Filho, minĂșsculo, no primeiro dia na escola, sequer olha para trĂĄs. Precisei arrancar um beijo antes de ele sair correndo para dentro, em direção a sabe-se lĂĄ do que. É necessĂĄrio ter muita autoestima para lidar com o seu bebezinho nĂŁo precisar de vocĂȘ.

O que me desespera é a falta de atividade. Acho que não conseguirei escapar do destino de me tornar a louca dos gatos. Serei aquela velha que assusta criancinhas no prédio com a roupa cheia de pelos e um chapéu esquisito. Aquela que não sai de casa e reconhece o gato pelo miado, sempre respondendo jå vou, Fulaninho. Fulaninho, óbvio, sendo o nome composto do felino em questão.

Emanuela Catarina, Ermenegildo SebastiĂŁo. Começo a montar os nomes dos futuros felinos na cabeça. InĂștil, nome de bicho a gente dĂĄ olhando pra ele, vendo que cara tem. Ainda assim, continuo. Bartolomeu FabrĂ­cio, EugĂȘnia LĂșcia, Raimundo Samuel, Edgar Ernesto. SerĂŁo muitos gatos, preciso estar preparada.

Terei longos debates a respeito do Ășltimo livro que li com o gato que estiver no colo naquele momento.

Edgar Ernesto, vocĂȘ tambĂ©m ficou impactado? O gato me olharĂĄ com desprezo e eu tentarei argumentar contra sua Ăłbvia insensibilidade e a favor da complexidade emocional na narrativa, esquecendo que gatos nĂŁo sabem ler.

Verei filmes e sĂ©ries com os gatos, de acordo com a preferĂȘncia deles, naturalmente. EugĂȘnia LĂșcia, por exemplo, gosta muito de Fantasia, do Disney. NĂŁo, nĂŁo aquele lixo que fizeram em 2000. EugĂȘnia LĂșcia e eu gostamos do original de 1940. Ermenegildo SebastiĂŁo gosta de filmes de James Bond. Bartolomeu FabrĂ­cio gosta mesmo Ă© de jogo de futebol mas esse, coitado, Ă© sempre voto vencido.

Um pouco mais e começo a falar com as plantas. Por via das dĂșvidas, melhor jĂĄ comprar um sombrero.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho