Sobre o que vocĂŞ acha que dois amigos escritores falam quando se encontram?
a. Fazem previsões sobre o fim do romance?
b. Trocam impressões sobre as novas tendências da literatura anglo-saxônica?
c. Discutem se Capitu traiu ou nĂŁo Bentinho?
d. Fazem uma análise comparativa entre o Jornal Nacional e a literatura distópica?
Não, nada disso. Lamento decepcionar os leitores românticos, mas, como todo mundo, os dois amigos escritores falam sobre dinheiro.
Eles perguntam um ao outro como estĂŁo se virando para pagar as contas, se as vendas caĂram muito, se está dando aula, se fez palestras, etc… Viver de escrever nĂŁo Ă© fácil. Requer planos econĂ´micos, pedaladas fiscais e um otimismo de Paulo Guedes (“no ano que vem vamos decolar!”).
Para subsidiar essa conversa, o documento mais importante Ă© a ansiada e temĂvel “prestação de contas”. Trata-se de um PDF no qual as editoras detalham os nĂşmeros de livros que vendemos e quanto iremos ganhar.
Pois bem, cada vez que leio esse documento, uma coisa me chama a atenção. O que você acha que é?
a. Um livro nĂŁo vender nenhum exemplar?
b. Um livro vender 333 exemplares?
c. Um livro nĂŁo vender nada por dez meses e, de repente, vender 38 exemplares num mĂŞs?
d. Um livro vender um Ăşnico exemplar no perĂodo?
A primeira opção, infelizmente, Ă© algo bem comum. Os tĂtulos envelhecem e acabam sendo abandonados pelos leitores. Minha prestação de contas tem mais zeros que meu velho boletim escolar.
A opção “b” também não tem nada de mais. Números engraçados, como os três três de trezentos e trinta e três são raros, mas o acaso adora fazer gracinhas.
Quanto à “c”, nĂŁo vender nada por um tempo e repentinamente vender um punhadinho nĂŁo Ă© um milagre conseguido Ă custa de orações e dĂzimos. O que acontece Ă© que, de vez em quando, algum professor indica um livro seu para a classe e surge esse pequeno oásis no deserto.
A opção “d” é que me deixa encafifado. Fico pensando em quem será aquele leitor de gosto singular? Por que terá comprado aquele livro que já ninguém compra há tanto tempo?
Tenho vontade de abrir a janela e gritar: “Quem sois vós, cavaleiro solitário?”.
Mas, como sĂł receberia xingamentos, porque estou escrevendo este texto Ă s seis da manhĂŁ, sĂł me resta tentar conjecturar quem seria este leitor.
Por exemplo, olhando aqui a última prestação de contas, vi que uma pessoa comprou o Nove contra o 9 em dezembro. Imagino que deve ser um octogenário leitor, que o adquiriu porque seu sonho era ter sido centroavante do Operário de Campo Grande, e não o reles milionário dono de uma rede de lojas de eletrodomésticos.
Vi que o Pequenos amores teve uma venda em outubro e outra em dezembro. AĂ ficou fácil. O comprador dos dois exemplares certamente Ă© um conquistador barato. Ele deu um exemplar para uma bela senhorita em outubro. Ficaram juntos atĂ© novembro, quando ela, já o conhecendo melhor, mandou-o para o quinto dos infernos. EntĂŁo, em dezembro, ele comprou outro exemplar para a prĂłxima vĂtima.
Futebologia teve um Ăşnico exemplar vendido em novembro. Provavelmente seu comprador pensou que se tratava de um livro de autoajuda baseado em ensinamentos ludopĂ©dicos do tipo “CapĂtulo 1: Seja como um goleiro seguro: sĂł salte se for necessário” ou “CapĂtulo 5: Faça como os volantes: deixe sua assinatura na canela do adversário”.
Os cabeças-de-bagre tambĂ©m merecem o paraĂso vendeu um exemplar em novembro e outro em dezembro. Meu palpite Ă© que o comprador de novembro tenha dado o livro como presente de aniversário para um companheiro do futebol soçaite e, junto, enviou um cartĂŁo com a frase: “Feliz aniversário, cabeça-de-bagre, vocĂŞ tambĂ©m merece o paraĂso”. Como o presenteador fazia aniversário em dezembro, o presenteado deu-lhe o mesmo livro e rebateu a ofensa com a dedicatĂłria: “Feliz aniversário, cabeça-de-bagre, vocĂŞ merece o inferno pelo gol contra no Ăşltimo jogo”.
Enfim, são apenas conjecturas. Mas eu realmente tenho muita curiosidade em saber quem são esses náufragos em ilhas desertas, esses leitores que vão contra a corrente e são os únicos a comprarem um tal livro. O que pensam, onde vivem, do que se alimentam, como se reproduzem? Cartas à redação, por favor.