🔓 Quatro telefonemas

A despedida de Kiki, uma gata persa dourada que, após ter sido grande companheira, adoeceu seriamente e precisou ser enviada ao paraíso dos felinos
Ilustração: Carolina Vigna
08/07/2022

Colette amava os gatos. Teve vários ao longo da vida. Quando era ainda casada com seu primeiro marido, Henry Gauthier-Villars, cujos romances ela escrevia para que ele os assinasse como se fossem seus, com o pseudônimo de Willy, existia um gato chamado Kiki. Mais precisamente Kiki-la-Doucette. Era um angorá. Morreu em 1903, nos diz Judith Thurman em sua biografia da escritora, Secrets of the flesh, sem especificar a razão da morte e a idade do gato.

Kiki-la-Doucette, gato bem real, inspirou um personagem literário. No livro de Colette Dialogues de bêtes, publicado em 1904, portanto após a morte de Kiki, o gato aparece em vários diálogos conversando com Toby-Chien, o buldogue francês que também existiu. De angorá, Kiki-la-Doucette vira um chartreux, embora sua descrição física — “um corpo listrado” — não se pareça à dos gatos dessa raça. Em 1930, Colette ainda estava revisitando essa obra. Em suas memórias sobre o casamento com Willy publicadas em 1936, Mes apprentissages, a escritora assim descreve o angorá: “Longo, opulento, sutil”.

Nos diálogos com Toby, Kiki-la-Doucette mostra-se intrinsicamente felino, ou como imaginamos que um gato deva ser. É dado a dizer ao buldogue frases como: “Só vejo extravagâncias ao meu redor”; “as sutilezas psicológicas sempre ficarão inacessíveis a você”; “sinto vergonha por você, você ama todo mundo, aceita todas as rejeições de forma servil”; “imita minha divina serenidade”.

Os dois, Kiki e Toby, amam seres diferentes. O gato prefere “Ele”, alter ego de Willy, enquanto o buldogue entrega sua devoção a “Ela”, a própria Colette. Um dos diálogos acontece durante uma viagem de trem, de que participam Ela, Ele, Kiki e Toby. O cachorro está solto, e o gato está em uma cesta fechada. Kiki exclama: “As torturas que sofro são morais. Estou sendo submetido ao mesmo tempo ao enclausuramento, à humilhação, à obscuridade, ao esquecimento e aos sacolejos”. Seu desconforto logo termina. “Ele” retira o gato da cesta, dizendo: “Venha, meu belo Kiki, meu enclausurado, venha, você agora terá rosbife frio e peito de frango”.

Kiki explica a Toby como consegue evitar, ao contrário do seu interlocutor, o óleo de rícino:

Uma vez Ela quis — eu era ainda pequeno — me purgar com o óleo. Eu a arranhei e mordi tanto, que nunca mais Ela tentou. Por um minuto, Ela deve ter achado que estava com um demônio sobre os joelhos. Eu me contorci em uma espiral, soprei fogo, multipliquei por cem as minhas garras, por mil os meus dentes, e fugi, como em um passe de mágica.

Kiki também transmite a Toby sua tática para evitar aquilo que o buldogue classifica como “o suplício do banho”. Explica que, ao ser submetido à experiência, deitara-se de costas e adotara o olhar “clemente e aterrorizado do cordeiro no altar”.

Companhia felina
Apenas este ano tomei conhecimento da existência dos dois Kiki-la-Doucette, o real e o fictício. Quando isso aconteceu, minha família havia perdido uma outra Kiki. Muitas vezes escrevi sobre nossa gata persa dourada, que emprestou mesmo seu nome para o título de uma crônica de abril de 2020, Kiki em Kuala Lumpur.

A viagem para trazê-la de Brasília à Malásia, em janeiro daquele ano, durou, de porta a porta, 36 horas, atravessando dois oceanos, a bordo de três aviões. Um percurso, sem dúvida, mais penoso do que o trajeto de trem dos personagens de Colette. Trancada em uma jaula nos três diferentes voos conosco, emulando Kiki-la-Doucette a nossa Kiki miou praticamente as 36 horas. No último trecho, Istambul-Kuala Lumpur, puxei-a um momento para fora da pequena jaula, segurei-a nos braços, e passeamos juntos pela cabine. Os membros da tripulação, em vez de me censurar, começaram a me mostrar fotos dos seus próprios gatos.

Não foi à toa que escrevi sobre Kiki em abril de 2020, quando vigorava na Malásia o primeiro confinamento e o pavor do vírus se iniciava. Era proibido sair de casa, a não ser para comprar comida e remédio. Enjaulado em um apartamento vazio em Kuala Lumpur, sem a biblioteca e sem a mobília, que estavam em um container no cais de Port Klang, sem conhecer quase ninguém na Malásia, onde eu chegara cinco semanas antes do início do confinamento, forçosamente separado da minha família amparei-me na gata persa dourada. Tínhamos apenas, como companhia, um ao outro. Para mim, a única exceção, além dos livros que eu previdentemente fora comprando depois da chegada, era um amigo brasileiro que, uma vez por semana, me dava carona até o supermercado. Para Kiki, não havia o alívio da quebra da rotina. Era eu apenas em seu universo, e mais ninguém.

Houve depois disso outros confinamentos. Aconteceu assim o que sempre acontece quando dois seres que se amam são obrigados a viver encerrados, na presença exclusiva e constante um do outro. O amor cresceu ainda mais.

Em novembro de 2021, as fronteiras entre Malásia e Singapura foram parcialmente reabertas, sob diversas condições. No início de dezembro, viajei a Singapura. Como contei na carta da Malásia de janeiro, Tchekhov e os tigres, rever minha mulher, conhecer sua casa, pareceu-me um paraíso, após as agruras dos confinamentos. Durante uma semana, tudo transcorreu de maneira perfeita. Até que veio o primeiro telefonema.

Trauma
Em Kuala Lumpur, Kiki parara de comer. Videoconferências entre nós não a motivaram. Liguei para o veterinário. Ao visitá-la, ele recomendou uma alimentação especial e vitamina B. Avisou que, se ela não voltasse a comer em poucos dias, teria de ser internada.

Dois dias depois, um domingo de tarde, regressei à Malásia. Ao entrar no apartamento, notei um silêncio pouco habitual. Não houve miados. Não houve corrida até a porta para me receber. Chamei. Procurei. Sem resultado. Supus que ela estaria dormindo em algum novo esconderijo.

Desfiz a mala. Guardei as roupas. Liguei para minha mulher. Tomei um chá. Chamei. Procurei. O silêncio continuava. A solidão também. Àquela altura, fazia já duas horas desde minha chegada a casa. O sol se punha. Tentei novamente.

Foi embaixo de um móvel que a encontrei.

Nunca ela havia se escondido ali. Estava acocorada, ensimesmada. O olhar era opaco, indiferente. Ofereci comida, que ela rejeitou. Peguei-a no colo. Trouxe-a para cima da cama. Ela imediatamente saiu do quarto.

Na segunda-feira, levei-a uma clínica. A veterinária declarou: “Ela sofreu um trauma emocional com sua viagem. Por isso parou de comer e daí desenvolveu uma doença típica de gato idoso, lipidose hepática”. Perguntei sobre seu prognóstico. A veterinária hesitou apenas um pouco antes de responder: “Bem, ela tem 17 anos. Já está no bônus”. À noite, recebi da clínica o segundo telefonema de más notícias: “O resultado do exame de sangue é muito ruim”.

Nova existência
Começamos então, Kiki e eu, uma nova existência. Ela não comia de forma espontânea. Trancada em uma jaula, recebia soro por via intravenosa. A comida era forçada pela garganta. Eu ia à clínica na hora do almoço. Abria a porta da jaula. Conversava com ela. Às vezes, ela ronronava, enquanto eu fazia carinho. Muitas vezes, me ignorava. Sugeriram-me que eu a fizesse escutar música. Selecionei árias de Mozart, sobretudo de As bodas de Figaro e de Don Giovanni. A escolha não era arbitrária. Durante os confinamentos, à noite eu costumava assistir às gravações oferecidas gratuitamente pela Metropolitan Opera. Chamara minha atenção o fato de que Kiki levantava a cabeça com frequência, atenta, quando a ópera era de Mozart.

As árias de Cherubino e de Don Ottavio, apesar de encantadoras, não pareciam causar efeito algum. A gata persa dourada continuava sem comer.

Eu insistia em falar com a veterinária a cada visita, o que significava esperar que terminasse alguma consulta. Isso determinava quanto tempo eu teria com Kiki. Às vezes, conseguia ficar 45 minutos parado diante da porta aberta da jaula, dizendo-lhe palavras de carinho; às vezes, só podia ficar dez minutos antes de voltar para o escritório.

Chegar em casa de noite significava enfrentar, ao sair do elevador, a perspectiva de entrar no apartamento vazio, sentir sua ausência e enfrentar sozinho o silêncio e a escuridão.

O Natal se aproximava. Viajei a Singapura para passá-lo em família.

Todo dia, ligava para a clínica. A resposta era sempre a mesma:
“Ela continua sem comer”. Uma vez, perguntei à veterinária se ela me avisaria se fosse necessário administrar o que eu prefiro chamar de “a injeção da felicidade eterna”. A veterinária declarou-se, por razões éticas, contra a eutanásia. Imaginei a gata persa dourada talvez definhando por semanas, meses. Conversei com a outra sócia da clínica, que se mostrou mais receptiva.

Na tarde do dia seguinte, 31 de dezembro, estávamos todos assistindo no cinema, em Singapura, a um filme muito ruim, House of Gucci, quando entrou no meu celular o terceiro telefonema portador de más notícias. Saí da sala e fui para o corredor. Não havia ninguém por perto. Atendi. O ultrassom mais preciso que eu insistira fosse feito em outra clínica mostrara que vários órgãos estavam afetados. A veterinária, categórica, afirmou que Kiki estava sofrendo. Não havia esperança.

Despedida
Enquanto eu analisava o dever exigido de mim, a ligação continuava ativa. A veterinária esperava uma decisão. Era a terceira vez que eu passava por esse momento. Em 2012, já tivéramos de sacrificar nossa cachorra Missy, e, em 2018, outro gato, o majestático James. Dispomos da faculdade de poupar sofrimento aos animais que amamos. Mas se esperamos demais, depois nos sentimos culpados por ter prolongado a sua dor. Se não esperamos, fica a dúvida se não nos precipitamos.

Dei a autorização. Opinei porém que alguns dias, até a minha volta a Kuala Lumpur, não fariam diferença alguma para a Kiki, mas toda para mim, pois permitiriam uma despedida. A veterinária soterrou minha autocomiseração. Repetiu que o animal sofria; seria cruel esperar um dia a mais sequer. Quanto à despedida, ofereceu-me uma videoconferência com Kiki. Colocou o celular frente a ela, que estava solta em cima da mesa de metal do consultório.

Falei longamente de amor e gratidão. Ela miava, se agitava e ronronava sobre a mesa de metal. Desliguei.

Minha mulher apareceu. Conversamos sobre como dar a notícia à nossa filha, que crescera com Kiki, escolhera o seu nome e, dentro da sala de projeção, sabia que algo estava acontecendo. Nesse momento, entrou a quarta chamada. Atendi, aceitando ter de ouvir que tudo terminara.

Não era isso o que nos esperava.

A veterinária ligava para avisar que, após três semanas sem se alimentar espontaneamente, Kiki, na hora em que iria receber a injeção, se jogara sobre um prato de comida destinado a outro gato. Comera.

Dos quatro telefonemas, esse foi o pior. Nosso nível de responsabilidade moral acabara de aumentar consideravelmente. Indaguei: “Ela pode ser salva, então?”. A veterinária, cautelosa, explicou: “Não creio. O que o ultrassom revelou não pode ser ignorado. Os órgãos estão comprometidos. E é também provável que a refeição de agora seja um caso isolado. Mesmo que ela volte a comer sozinha, seriam poucas semanas de vida a mais, talvez alguns meses, em condições difíceis e desconfortáveis para ela”. Assenti.

Pensei no jardim em Brasília e no jardim em Bruxelas, nos quais Kiki crescera e correra, livre, caçara pássaros e lagartixas e fora feliz. Recebi então a mensagem por WhatsApp: “Foi indolor, e ela agora descansa no paraíso dos gatos”.

Kiki, bebê espevitado. Kiki, bela, inteligente e afetuosa. Kiki, ainda viva enquanto eu viver.

Ary Quintella

É diplomata e escreve suas memórias em aryquintella.com.

Rascunho