O aplicativo de email que uso no celular é ucraniano. Eu só soube porque em algum desses dias após o início da guerra, uma mensagem em azul e amarelo pulou na minha frente: nossa equipe está sob fogo russo, mostre seu apoio e fique do nosso lado. Eu não saberia como mostrar meu apoio à equipe do aplicativo, então apenas dediquei uns segundos a imaginar o programador de software que garante que meu aplicativo esteja sempre funcionando (e ele sempre está) em algum lugar da Ucrânia sentindo medo.
Foi talvez o primeiro momento que senti que essa guerra europeia poderia ter algo a ver comigo, para além de preços flutuantes de petróleo e noticiário inundado de selvageria e para além de uma empatia generalizada com a humanidade. Aqui no sul da América do Sul, mesmo olhando aquelas pessoas que poderiam se mesclar à paisagem humana de certas cidades do interior gaúcho, elas parecem pertencer a outro universo.
Não é o que acontece com a maioria dos jornalistas, aparentemente. Pessoas muito mais competentes que eu já apontaram o racismo e etnocentrismo de frases absurdas como “é muito comovente porque são pessoas de cabelo loiro e olhos azuis sendo mortas”. Jamil Chade, em entrevista para o podcast da revista Gama, reconhece que é natural que a gente se abale ao ver pessoas que se parecem a nós passando por um sofrimento extremo, e ele então diz uma coisa bonita: deveria ser papel do jornalismo ampliar o nosso entendimento do que são pessoas iguais a nós. A literatura pode fazer o mesmo, em teoria. Na prática, a Europa já produziu incontáveis obras geniais e belíssimas, mas isso não a poupou de igualmente incontáveis guerras.
Mas não foi em nada disso que pensei quando meu aplicativo de email pediu ajuda aos ucranianos. O que eu pensei foi naquele hipotético programador de software, talvez trabalhando de home office em alguma cidade onde os bombardeios ainda não chegaram, ou talvez ainda só umas poucas bombas explodiram. E é provável que ele siga trabalhando mesmo assim, porque precisa de um salário, assim como os brasileiros que moram em bairros violentos, que vivem sob toques de recolher, que moram sob ameaça de fuzis continuam trabalhando. Assim como eu, se a guerra aqui chegasse, continuaria trabalhando. E é por isso que pela primeira vez senti que aquilo tudo tem a ver comigo, porque no que pesem as diferenças de classe, há proletários no mundo todo.
A principal diferença entre nós é o acesso ao suposto progresso. O que me choca nas imagens que correm o mundo não é tanto a morte (essa que é onipresente), mas o fato de que elas não mostram um lugar previamente precário sendo cada vez mais devastado; não, elas mostram lugares previamente lindos e bem estruturados sucubimbo às ruínas. Quando vemos os prédios residenciais esburacados por mísseis, estamos testemunhando o progresso contra o progresso. O dinheiro contra o dinheiro A sofisticação tecnológica contra algumas das cidades mais desenvolvidas do mundo. O mais letal que o dinheiro pode comprar contra o mais belo urbanismo que o dinheiro pode manter. Não há belas artes, não há riqueza e não há tradição que nos impeça de agirmos contra nós mesmos.