🔓 Primeiro dia de aula

Infalíveis dicas para se fazer um belo e eficiente linchamento digital independentemente do assunto
08/01/2023

Bom dia, meus caros alunos, futuro do jornalismo nacional. Esse é o nosso primeiro dia de aula e, para que não haja ninguém na sala errada, aviso que a matéria aqui é “Linchamento Digital I”, que é pré-requisito para “Calúnia e Difamação em Redes Sociais”. Antigamente o curso se chamava “Ética da Comunicação”, mas foi atualizado. Olhem, modéstia à parte, bem à parte mesmo, essa é a principal matéria de todo o curso de Jornalismo. As revistas e os jornais estão indo para o mesmo cemitério das videolocadoras, a televisão virou Netflix e o rádio… já era, pertence às igrejas. O que sobrou? A internet. E para que serve a internet? Para o linchamento digital. Então prestem atenção, porque dominar essa matéria é o melhor caminho para subir na carreira jornalística. Ah, alguns largaram o celular, é? Gostei de ver. Bem, o primeiro passo para isso é ter uma reportagem repetida por muita gente: por blogs, instagrans, feices e etceteras. E como você consegue isso? Com alguma denúncia contundente. Mas às vezes você não tem o que soprar na trombeta, quer dizer, sempre há, mas às vezes você está com preguiça de procurar. Então, o que você faz? Inventa alguma coisa ou alguém para linchar. Inventar é ruim? Não, é bom. Jornalismo moderno se faz com criatividade. E como você transforma um tema em escândalo? A primeira coisa é não dar margem à dúvida. Nem pense em mostrar os dois lados da questão. Linchamento não pode ter equilíbrio. Quer ver equilíbrio, vai no show do Cirque du Soleil. Aqui não tem disso. Então, pra começo de conversa, você só pode entrevistar gente que pensa como você. Se alguém disser o contrário, corta o entrevistado ou edita, usando só o que interessa. Mas tem que dar uma disfarçada nesse direcionamento. Por exemplo, coloque um subtítulo do tipo “O outro lado da questão” ou “Contraponto”. Só que você não coloca nenhum contraponto lá. Vai ser mais do mesmo. É só para dar um ar de contraponto, não é para contrapontar de verdade. Aliás, notem que os entrevistados/linchadores não precisam ser especialistas no assunto do texto. Por exemplo, se o tema for literatura, eles não precisam ser escritores ou críticos literários. Basta que tenham um diploma e pronto, já vale. E também é importante dar umas aspas pro linchado, só para parecer que você não tá linchando, mas jornalistando. Mas sem exagero, hein? Deem uma aspinha de nada. Mesmo que a entrevista seja enorme e o linchado responda tudo que você perguntou, deem só uma aspinha de nada. Linchado não tem que falar, tem que apanhar. E fiquem tranquilos: muita gente vai aparecer para ajudar você a linchar. O linchamento, tanto o real quanto o virtual, é um convite impossível de negar. Todo mundo vai querer dar uma traulitada no sujeito. Porque, se alguém não bater, vai parecer que está a favor do linchado. E aí merece ser linchado também. O máximo que os do contra vão fazer é ficar em silêncio. Sabem aquele cara que vê um linchamento na rua e passa pro outro lado da calçada? Então, não vai ter mais que isso. De vez em quando aparece um aluno querendo dar uma de bonzinho e diz que o linchamento digital não é uma coisa jornalisticamente correta. Bobagem de principiante. Coisa de carola. O linchamento é uma prática excelente! Dá um sentimento de pertencimento, de grupo. Todo mundo sai ganhando num linchamento. Principalmente o primeiro a atirar a pedra. Mas os outros também. É a chance de mostrar pontaria e força. Bom, talvez o linchado não saia ganhando nada, mas não se pode agradar a todo mundo. Ah, um conselho importante: o linchamento tem que parecer defender uma causa nobre. Tem que ser a favor das mulheres, contra a pedofilia, contra o racismo, pela liberdade de expressão, pelo fim da pobreza, pelo futuro do país, etecetera. Isso é fundamental. A causa tem que ser boa, porque aí os linchadores digitais se sentirão fazendo o bem. Se o linchado estava realmente contra a causa ou não, é o de menos. Depois que um linchamento começa, isso não tem a menor importância. O que vale é a causa. As pessoas vão lá, dão seus chutes e voltam para casa com a sensação de ter feito justiça com as próprias mãos. Ou pés, no caso. Aliás, se você quer mesmo ser um bom linchador, digital ou não, é muito importante que você se convença de que está do lado certo. Como disse Fernando Pessoa, e vou até subir na cadeira para dizer essa frase: “O linchador é um fingidor. E finge tão completamente que chega a fingir que é verdade a mentira que deveras mente”. Lindo, não é? Vou repetir: “O linchador é um fingidor. E finge tão completamente que chega a fingir que é verdade a mentira que deveras mente”. O quê? Palmas? Não, pessoal, parem com isso. Vocês não entenderam? Era ironia, trote de primeiro dia de aula, eu estava brin…

José Roberto Torero

Escritor e roteirista, Torero nasceu em Santos (SP), em 1963. É autor de O chalaça (prêmio Jabuti na categoria romance em 1995) e Os vermes, entre outros. Também é autor de livros de não ficção e de literatura infantojuvenil. Ao lado de Paulo Halm, assinou o roteiro do longa-metragem Pequeno dicionário amoroso.

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