Bom dia, meus caros alunos, futuro do jornalismo nacional. Esse Ă© o nosso primeiro dia de aula e, para que nĂŁo haja ninguĂ©m na sala errada, aviso que a matĂ©ria aqui Ă© “Linchamento Digital I”, que Ă© prĂ©-requisito para “CalĂşnia e Difamação em Redes Sociais”. Antigamente o curso se chamava “Ética da Comunicação”, mas foi atualizado. Olhem, modĂ©stia Ă parte, bem Ă parte mesmo, essa Ă© a principal matĂ©ria de todo o curso de Jornalismo. As revistas e os jornais estĂŁo indo para o mesmo cemitĂ©rio das videolocadoras, a televisĂŁo virou Netflix e o rádio… já era, pertence Ă s igrejas. O que sobrou? A internet. E para que serve a internet? Para o linchamento digital. EntĂŁo prestem atenção, porque dominar essa matĂ©ria Ă© o melhor caminho para subir na carreira jornalĂstica. Ah, alguns largaram o celular, Ă©? Gostei de ver. Bem, o primeiro passo para isso Ă© ter uma reportagem repetida por muita gente: por blogs, instagrans, feices e etceteras. E como vocĂŞ consegue isso? Com alguma denĂşncia contundente. Mas Ă s vezes vocĂŞ nĂŁo tem o que soprar na trombeta, quer dizer, sempre há, mas Ă s vezes vocĂŞ está com preguiça de procurar. EntĂŁo, o que vocĂŞ faz? Inventa alguma coisa ou alguĂ©m para linchar. Inventar Ă© ruim? NĂŁo, Ă© bom. Jornalismo moderno se faz com criatividade. E como vocĂŞ transforma um tema em escândalo? A primeira coisa Ă© nĂŁo dar margem Ă dĂşvida. Nem pense em mostrar os dois lados da questĂŁo. Linchamento nĂŁo pode ter equilĂbrio. Quer ver equilĂbrio, vai no show do Cirque du Soleil. Aqui nĂŁo tem disso. EntĂŁo, pra começo de conversa, vocĂŞ sĂł pode entrevistar gente que pensa como vocĂŞ. Se alguĂ©m disser o contrário, corta o entrevistado ou edita, usando sĂł o que interessa. Mas tem que dar uma disfarçada nesse direcionamento. Por exemplo, coloque um subtĂtulo do tipo “O outro lado da questĂŁo” ou “Contraponto”. SĂł que vocĂŞ nĂŁo coloca nenhum contraponto lá. Vai ser mais do mesmo. É sĂł para dar um ar de contraponto, nĂŁo Ă© para contrapontar de verdade. Aliás, notem que os entrevistados/linchadores nĂŁo precisam ser especialistas no assunto do texto. Por exemplo, se o tema for literatura, eles nĂŁo precisam ser escritores ou crĂticos literários. Basta que tenham um diploma e pronto, já vale. E tambĂ©m Ă© importante dar umas aspas pro linchado, sĂł para parecer que vocĂŞ nĂŁo tá linchando, mas jornalistando. Mas sem exagero, hein? Deem uma aspinha de nada. Mesmo que a entrevista seja enorme e o linchado responda tudo que vocĂŞ perguntou, deem sĂł uma aspinha de nada. Linchado nĂŁo tem que falar, tem que apanhar. E fiquem tranquilos: muita gente vai aparecer para ajudar vocĂŞ a linchar. O linchamento, tanto o real quanto o virtual, Ă© um convite impossĂvel de negar. Todo mundo vai querer dar uma traulitada no sujeito. Porque, se alguĂ©m nĂŁo bater, vai parecer que está a favor do linchado. E aĂ merece ser linchado tambĂ©m. O máximo que os do contra vĂŁo fazer Ă© ficar em silĂŞncio. Sabem aquele cara que vĂŞ um linchamento na rua e passa pro outro lado da calçada? EntĂŁo, nĂŁo vai ter mais que isso. De vez em quando aparece um aluno querendo dar uma de bonzinho e diz que o linchamento digital nĂŁo Ă© uma coisa jornalisticamente correta. Bobagem de principiante. Coisa de carola. O linchamento Ă© uma prática excelente! Dá um sentimento de pertencimento, de grupo. Todo mundo sai ganhando num linchamento. Principalmente o primeiro a atirar a pedra. Mas os outros tambĂ©m. É a chance de mostrar pontaria e força. Bom, talvez o linchado nĂŁo saia ganhando nada, mas nĂŁo se pode agradar a todo mundo. Ah, um conselho importante: o linchamento tem que parecer defender uma causa nobre. Tem que ser a favor das mulheres, contra a pedofilia, contra o racismo, pela liberdade de expressĂŁo, pelo fim da pobreza, pelo futuro do paĂs, etecetera. Isso Ă© fundamental. A causa tem que ser boa, porque aĂ os linchadores digitais se sentirĂŁo fazendo o bem. Se o linchado estava realmente contra a causa ou nĂŁo, Ă© o de menos. Depois que um linchamento começa, isso nĂŁo tem a menor importância. O que vale Ă© a causa. As pessoas vĂŁo lá, dĂŁo seus chutes e voltam para casa com a sensação de ter feito justiça com as prĂłprias mĂŁos. Ou pĂ©s, no caso. Aliás, se vocĂŞ quer mesmo ser um bom linchador, digital ou nĂŁo, Ă© muito importante que vocĂŞ se convença de que está do lado certo. Como disse Fernando Pessoa, e vou atĂ© subir na cadeira para dizer essa frase: “O linchador Ă© um fingidor. E finge tĂŁo completamente que chega a fingir que Ă© verdade a mentira que deveras mente”. Lindo, nĂŁo Ă©? Vou repetir: “O linchador Ă© um fingidor. E finge tĂŁo completamente que chega a fingir que Ă© verdade a mentira que deveras mente”. O quĂŞ? Palmas? NĂŁo, pessoal, parem com isso. VocĂŞs nĂŁo entenderam? Era ironia, trote de primeiro dia de aula, eu estava brin…