Zapear. Isso é coisa de gente do século 20, em especial depois da invenção do controle remoto. Na casa dos meus avós, lembro da TV que tinha uma interface com botões. Era lá que a gente apertava quando queria mudar o canal. Aliás, o aparelho demorava a ligar, tinha de “esquentar”, a imagem ia clareando lentamente e nem me lembro dos programas a que a gente assistia quando fazia aquela visitinha compulsória.
Na casa dos meus pais, já lembro de uma TV mais moderninha, de tubo ainda, claro, mas que tinha o tal controle. O barato era mudar de canal sem ter de tirar o popô do sofá. Quanta vantagem! E com isso a gente ficava mais livre para zanzar pelos canais, meia dúzia, sei lá, que às vezes funcionavam bem, mas às vezes “chuviscavam”.
Ainda sou uma jovem senhora e tudo isso parece tĂŁo tecnossáurico! As TVs de tubo andaram sumindo (cheguei a comprar uma em oferta, já nos anos 2000, e depois a vendi por cinquenta reais). As TVs de LED ou cristal lĂquido e coisas com esses nomes bacanas passaram a ocupar nossas estantes, que sequer tinham buracos retangulares do tamanho das telas, cada vez maiores, com mais polegadas, medida que a gente nem entende direito.
Antagonismos apenas aparentes
Nessas TVs de tubo Ă© que eu assistia aos meus desenhos animados. Dois deles, pelo menos, me intrigavam porque pareciam antagĂ´nicos: Os Flintstones e Os Jetsons. Eu torcia para que essas famĂlias se encontrassem em algum passeio de máquina do tempo. NĂŁo era incomum que eu sonhasse acordada com uma espĂ©cie de De volta pro futuro, com Marty McFly levando cantada da Wilma. Lembro de achar o Barney bonitinho e de criar caso com aqueles robĂ´s do futuro, que levavam chinelos como cachorros adestrados.
Os dois desenhos seriados sĂŁo de William Hanna e Joseph Barbera, sobrenomes que eu via com admiração quando subiam os crĂ©ditos ou quando começavam os episĂłdios. Atualmente, as duas famĂlias estĂŁo juntas num comercial de banco, se nĂŁo me falha a memĂłria recente. Meu sonho realizado, mas num lugar esquisito. Pois bem. O que me traz aqui nem Ă© tanto essa nostalgia relativa sobre desenhos e aparelhos televisores, mas um episĂłdio dos Jetsons a que assisti meio sem querer, num dia destes, semanas atrás. Sim, em 2021.
Zapeei os canais, como há dezenas de anos faço, e pá: parei num que exibia um episĂłdio daquela velha famĂlia do futuro. E fiquei pasma. Minha ideia nem era me interessar, mas Ă medida que a historinha evoluĂa, eu ficava cada vez mais boquiaberta, pensando em como a gente Ă© besta quando Ă© mais jovem. Será que eu nĂŁo notava nada disso?
Entre outras cositas, nesse episĂłdio em particular, a Jane Jetson, esposa do George, tratava de dirigir aquele veĂculo voador deles. NĂŁo me lembro mais da questĂŁo central daquele dia, mas meu queixo foi caindo Ă medida que as piadinhas machistas sobre mulheres dirigirem foram se acumulando. Impressionante. Que futuro careta aqueles roteiristas imaginavam! Seriam incapazes de projetar algo melhor, e nĂŁo apenas em termos de tecnologias, robĂ´s e carros voadores? Será que nossa máxima visĂŁo de futuro sĂł atinge as coisas, e jamais as pessoas? Como a Jane, uma mulher de 33 anos no desenho, poderia ser o que foram as minhas bisavĂłs?
Fiquei ali, atônita, assistindo a Os Jetsons, em crise com minha infância inocente, tentando escavar quanta coisa imbecil eu devo ter introjetado com esses desenhos bem-intencionados, divertidos, tão falsamente inocentes. Fiquei pensando naquele Jetson machista, muito parecido com muitos homens que eu ainda conheço, contando até dez, cem, mil para ter paciência para os outros tantos que ainda conhecerei e ainda virão.
O futuro, naquele desenho, se esqueceu de ser melhor nas relações entre as pessoas. Aliás… tĂŁo parecido com a vida. Ficamos presos Ă s máquinas que fazem cafĂ© sozinhas, enquanto nossas meninas continuam levando chinelos velhos para uns e outros. Nem mesmo aquela robĂ´ nos livraria dessa assimetria toda. Fiquei de cara, como dizemos aqui, ou como dizĂamos na minha adolescĂŞncia, pobre adolescĂŞncia, aprendendo, sem querer e sem muita defesa, um futuro tĂŁo besta quanto o passado.