🔓 Pretérito no futuro

À medida que o desenho animado evoluía, a cronista ficava cada vez mais boquiaberta, pensando em como a gente é besta quando é mais jovem
10/08/2021

Zapear. Isso é coisa de gente do século 20, em especial depois da invenção do controle remoto. Na casa dos meus avós, lembro da TV que tinha uma interface com botões. Era lá que a gente apertava quando queria mudar o canal. Aliás, o aparelho demorava a ligar, tinha de “esquentar”, a imagem ia clareando lentamente e nem me lembro dos programas a que a gente assistia quando fazia aquela visitinha compulsória.

Na casa dos meus pais, já lembro de uma TV mais moderninha, de tubo ainda, claro, mas que tinha o tal controle. O barato era mudar de canal sem ter de tirar o popô do sofá. Quanta vantagem! E com isso a gente ficava mais livre para zanzar pelos canais, meia dúzia, sei lá, que às vezes funcionavam bem, mas às vezes “chuviscavam”.

Ainda sou uma jovem senhora e tudo isso parece tão tecnossáurico! As TVs de tubo andaram sumindo (cheguei a comprar uma em oferta, já nos anos 2000, e depois a vendi por cinquenta reais). As TVs de LED ou cristal líquido e coisas com esses nomes bacanas passaram a ocupar nossas estantes, que sequer tinham buracos retangulares do tamanho das telas, cada vez maiores, com mais polegadas, medida que a gente nem entende direito.

Antagonismos apenas aparentes
Nessas TVs de tubo é que eu assistia aos meus desenhos animados. Dois deles, pelo menos, me intrigavam porque pareciam antagônicos: Os Flintstones e Os Jetsons. Eu torcia para que essas famílias se encontrassem em algum passeio de máquina do tempo. Não era incomum que eu sonhasse acordada com uma espécie de De volta pro futuro, com Marty McFly levando cantada da Wilma. Lembro de achar o Barney bonitinho e de criar caso com aqueles robôs do futuro, que levavam chinelos como cachorros adestrados.

Os dois desenhos seriados são de William Hanna e Joseph Barbera, sobrenomes que eu via com admiração quando subiam os créditos ou quando começavam os episódios. Atualmente, as duas famílias estão juntas num comercial de banco, se não me falha a memória recente. Meu sonho realizado, mas num lugar esquisito. Pois bem. O que me traz aqui nem é tanto essa nostalgia relativa sobre desenhos e aparelhos televisores, mas um episódio dos Jetsons a que assisti meio sem querer, num dia destes, semanas atrás. Sim, em 2021.

Zapeei os canais, como há dezenas de anos faço, e pá: parei num que exibia um episódio daquela velha família do futuro. E fiquei pasma. Minha ideia nem era me interessar, mas à medida que a historinha evoluía, eu ficava cada vez mais boquiaberta, pensando em como a gente é besta quando é mais jovem. Será que eu não notava nada disso?

Entre outras cositas, nesse episódio em particular, a Jane Jetson, esposa do George, tratava de dirigir aquele veículo voador deles. Não me lembro mais da questão central daquele dia, mas meu queixo foi caindo à medida que as piadinhas machistas sobre mulheres dirigirem foram se acumulando. Impressionante. Que futuro careta aqueles roteiristas imaginavam! Seriam incapazes de projetar algo melhor, e não apenas em termos de tecnologias, robôs e carros voadores? Será que nossa máxima visão de futuro só atinge as coisas, e jamais as pessoas? Como a Jane, uma mulher de 33 anos no desenho, poderia ser o que foram as minhas bisavós?

Fiquei ali, atônita, assistindo a Os Jetsons, em crise com minha infância inocente, tentando escavar quanta coisa imbecil eu devo ter introjetado com esses desenhos bem-intencionados, divertidos, tão falsamente inocentes. Fiquei pensando naquele Jetson machista, muito parecido com muitos homens que eu ainda conheço, contando até dez, cem, mil para ter paciência para os outros tantos que ainda conhecerei e ainda virão.

O futuro, naquele desenho, se esqueceu de ser melhor nas relações entre as pessoas. Aliás… tão parecido com a vida. Ficamos presos às máquinas que fazem café sozinhas, enquanto nossas meninas continuam levando chinelos velhos para uns e outros. Nem mesmo aquela robô nos livraria dessa assimetria toda. Fiquei de cara, como dizemos aqui, ou como dizíamos na minha adolescência, pobre adolescência, aprendendo, sem querer e sem muita defesa, um futuro tão besta quanto o passado.

Ana Elisa Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É autora de livros de poesia, conto e crônica, infantis e juvenis, tendo estreado com um volume de poemas em 1997. Teve colunas fixas em algumas revistas desde 2003 e publicou quatro livros de crônicas reunidas: Chicletes, Lambidinha & outras crônicas (Escribas, 2012), Meus segredos com Capitu (Escribas, 2013, semifinalista Portugal Telecom), Doida pra escrever (Moinhos, 2021) e Nossa língua & outras encrencas (Parábola, 2023). É professora da rede federal de ensino e pesquisadora das mulheres na edição.

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