🔓 Pornozão da hora

O primeiro filme de sexo explícito a gente nunca esquece: a frustrada tentativa de um grupo de meninas ávidas por conhecer o cinema pornô
Ilustração: Denise Gonçalves
07/06/2022

Era mil novecentos e oitenta e tal ou noventa e pouco. Minha memória não faz questão de precisão. Éramos um grupo de adolescentes ali pelos 13 a 16 anos e nunca tínhamos visto um filme pornô. O que sabíamos era que os meninos da rua viam. E se gabavam. E tiravam onda, além de humores e secreções que só conhecíamos dos livros de ciências, ao menos era o que a maioria dizia — nós e eles. Aparentemente, nos odiávamos e vivíamos competindo por coisas bestas.

Tínhamos nomes e assinaturas de grupo de bairro, inclusive para escrever com caneta em porta de banheiro. As meninas de outros bairros eram sempre mais bonitas e melhores do que nós, e os meninos de outros bairros não nos encontravam. Mas o que importava, naqueles dias, era que os babacas dos meninos se gabavam de ter visto filme pornô, explicitão mesmo, e a gente fingia que achava supernormal, com cara de quem lixava as unhas.

Locadora
Era mil novecentos e oitenta e picos ou noventa e ticos e existia um negócio chamado locadora. Era uma espécie de comércio onde podíamos alugar filmes em fitonas VHS. Em casa, algumas de nós tínhamos um aparelho chamado videocassete, uma espécie de caixa retangular que engolia a fita e passava na tevê o que a gente tivesse alugado.

As locadoras tinham regras. Uma delas era que menores de idade não podiam pegar certo tipo de filme. Pornô… nem pensar. Mas a gente pensava. Morria de curiosidade. E, principalmente, ficava pau da vida porque os meninos viviam nos zoando. Éramos ingênuas, bobas, nunca tínhamos visto um filme de sexo explícito.

Embora as locadoras tivessem regras, também sempre havia quem as burlasse. Mas esse não era bem o caso da dona da locadora do bairro, para nossa infelicidade. Os meninos eram um pouco mais velhos do que nós, alguns já tinham dezoito anos, o que dava a eles o direito de falar de coisas que ainda não acessávamos, contando vantagem até do que era evidentemente mentira. Nós, mais novas, e meninas ainda por cima, tínhamos a sensação de que todas as regras valiam mais para o nosso lado. E era.

A locadora do bairro tinha o sugestivo nome de Pirata. Nossas fichas lá eram as primeiras, tal foi nossa avidez por pegar filmes para assistir em casa. Nas salas de algumas, o videocassete imperava e podíamos fazer sessões de cinema, sempre vendo historinhas permitidas. Mas, um dia, decidimos subverter e assistir, finalmente, a um pornozão bem sórdido. Vamos nessa?

Qual de nós?
Foi um dia tenso, cheio de sussurros e segredinhos atrás das pilastras dos muros das casas. Como vamos pegar esse bendito filme? Apenas uma de nós era maior de idade. Logo ela, minha maior inimiga. Fazer o quê? E ela era metida a ousada, toparia fazer o favor de entrar na locadora, passear pelos romances água com açúcar, zanzar pelas aventuras, mexer um pouco nos filmes de terror, mas parar de vez diante dos pornôs e eróticos, que ficavam mais no fundo ou no mezanino, e tirar de lá, despistado entre outros, o famigerado pornozão explicitão.

Lá fomos nós pela rua, em grupo, altivas feito divas, descendo a rua em direção à locadora, no dia em que finalmente perderíamos a virgindade do filme de sexo explícito. Combinamos assim: nos esconderíamos perto da porta da locadora, enquanto a mais velha entraria lá, sem tremer e sem dar pinta, para alugar nosso filme proibidão.

Mas como sair com aquilo na rua? O filme ficaria registrado na fichinha da locadora? Como despistar as pessoas e entrar na casa da amiga que cederia o videocassete? Era uma tarde de dia de semana, os pais da colega estavam fora, seria moleza assistir ao filmaço e depois ir contar vantagem para os garotos do bairro, uns idiotas.

Aqueles dez minutos da colega dentro da locadora nos pareceram uma eternidade. Foi tenso, foi aflitivo e ainda dependíamos do bom gosto dela. Tínhamos nos esquecido de combinar qual filme ela pegaria, e naqueles idos não era assim tão fácil conseguir informação. Perguntar a quem? Quem nos daria boas referências pornográficas? E se nos lembrássemos dos filmes que os meninos mencionavam? Não adiantaria. Queríamos inovar, assistir a algo muito mais interessante do que as coisas que eles viam. Nossa colega maior de idade teria de ser esperta e maldosa.

O primeiro pornô a gente nunca esquece
De trás das árvores, do outro lado da calçada, ou espiando às vezes pela lateral da porta da locadora, víamos nossa colega andando para lá e para cá, pegando filmes, devolvendo à prateleira, sem decidir nada. Quando ela finalmente entrou na seção de proibidões, morremos de ansiedade cá fora. Pega logo, menina! E ela lia, se demorava, relia, olhava as capas, a maioria tapadas com tarjas ou plásticos. Até que, enfim, ela catou um filme, foi ao balcão, assinou a ficha e saiu de lá com uma sacolinha na mão. Era hora!

Subimos a rua sem ver nada direito, loucas para acessar o videocassete e começar a assistir. Dobramos as esquinas em êxtase, ansiosas, falando alto, imaginando o que veríamos naquelas cenas, quão explícito seria, se os atores e as atrizes prestariam, se haveria bons enredos ou não (imagina!), se o sexo era mesmo de verdade ou se era fingimento, os gemidos, as posições, afe!

Chegamos à casa da colega, conferimos se havia alguém por lá. Seria uma enorme frustração se a mãe tivesse chegado mais cedo ou se o irmão mais novo resolvesse dar o ar da graça. Não, o terreno estava livre. Era só ligar o videocassete, ligar a tevê, dar um play e arregalar os olhos. Todas apinhadas no sofazão diante da tevê de tubo, atentas às primeiras cenas pornozonas que veríamos na vida. Doidas para saber mais e para contar vantagens mais tarde.

Logo na primeira cena, veio a terrível decepção. Nossa desatenta colega pegara um desenho animado pornô. Um x-rated cartoon, em cores, mas tudo na base do desenho, sem uma pessoa de verdade sequer. Fast forward, pelo amor de Deus, para ver se era engano ou se havia um filme de verdade depois. Não. Era uma sequência de desenhos, afinal engraçados, com os sete anões fazendo suruba com a Branca de Neve, o Popeye comendo espinafre para o pinto crescer, a bruxa esperando a engorda do bilau do Joãozinho preso na gaiola e assim por diante. Quase choramos. Teríamos de começar tudo de novo. E, para piorar muito, os meninos do bairro ficaram sabendo. Haja bullying, haja vergonha. Gememos, mas foi de raiva.

Ana Elisa Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É autora de livros de poesia, conto e crônica, infantis e juvenis, tendo estreado com um volume de poemas em 1997. Teve colunas fixas em algumas revistas desde 2003 e publicou quatro livros de crônicas reunidas: Chicletes, Lambidinha & outras crônicas (Escribas, 2012), Meus segredos com Capitu (Escribas, 2013, semifinalista Portugal Telecom), Doida pra escrever (Moinhos, 2021) e Nossa língua & outras encrencas (Parábola, 2023). É professora da rede federal de ensino e pesquisadora das mulheres na edição.

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