🔓 Por uma beleza

Abrir mão das certezas é o caminho que a cronista encontrou para tentar ver o que há de melhor no mundo e nas pessoas
Ilustração: FP Rodrigues
09/06/2022

Por opção de vida, sempre procurei a beleza no mundo e nas pessoas.

Beleza, entretanto, não existe em formato puro. Nada é apenas belo (ou apenas feio).

O livro A história da feiura, do Umberto Eco, é tão ou mais interessante que A história da beleza, do mesmo autor. Recomendo ambos.

A gentileza (que, sim, gera gentileza) é algo que se aprende e, portanto, se ensina. A beleza também.

O importante é entender que é necessário buscar. A beleza não é dada.

O filme Beleza americana (1999, direção de Sam Mendes) tem uma cena comovente em que um personagem enxerga a beleza de um saco plástico dançando no vento. É puro suco de Hollywood, mas ainda assim merece ser visto.

Naturalmente, nem sempre é fácil ou óbvio. Algumas pessoas ofuscam o que há de belo nelas com radicalismo, extremismo, racismo, machismo e outros ismos. Às vezes não vale a pena, e tudo bem também.

Ainda assim, primeiro procuro. Nunca presumo algo.

Ao não presumir absolutamente nada a respeito de quem quer que seja (em busca dessa beleza), também não me permito ter certezas.

São as pessoas com muitas certezas que, justamente por terem uma resposta ou uma verdade, não conseguem perceber outras. E quem perde é sempre quem não vê a beleza, nunca, nunca as outras pessoas ou o mundo. O mundo não está nem aí para o que você vê ou deixa de ver. A única pessoa que tem algo a ganhar é quem vê.

Sim, sou da seita do Merleau-Ponty.

Em um exemplo simplista, se acreditam que gatos são traiçoeiros jamais conseguirão educar um gato para que não seja. Ou, se afirmam que o conjunto X de pessoas faz X ação (mulheres dirigem mal, homens gostam de cerveja, etc.), passarão suas vidas procurando exemplos que reafirmem sua crença. É assim que funciona. É assim que o preconceito se estabelece. Sempre a partir de uma certeza. Muitas vezes, uma certeza passada de pai para filho, adquirida na imprensa ou divulgada em uma bolha qualquer. Muitas vezes tudo isso junto e misturado. E vencer isso é dificílimo, mas não impossível.

Nesse quesito, minha mãe era fantástica. Bastava ver uma certezazinha brotando que ela vinha para cima de você tal qual um Aníbal enlouquecido e implacável atravessando a galope de elefante os Alpes. Era cansativo. Mas foi, confesso, educativo.

Com isso tudo, veja bem, não estou dizendo que não devemos defender, divulgar ou disseminar nossas ideias. Supondo que a opinião é fruto de uma reflexão, experiência, estudo ou observação, tentar convencer o outro é apenas natural e lógico. O problema começa quando rotulamos o outro.

Conhecimento é saber que Frankenstein não é o monstro; sabedoria é entender que Frankenstein é o monstro, afinal de contas.

Nossa dor não é única e jamais será.

Nessa linha, deixo recomendado aqui o livro Às vezes o monstro é uma mulher, da Camille Castelo Branco (Folheando, 2022).

Meus primeiros livros, a série infantil Godô, eram sobre essa questão. O cachorro não faz nada que se espera dele e isso é ótimo. É o menino que não joga bola. Estou cercada de pessoas maravilhosamente fora do padrão e quis mostrar essa beleza pessoal, familiar e íntima, e, por isso mesmo, genérica.

É por isso que a crônica funciona.

Não há nada mais universal que a intimidade.

Ainda bem.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho